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Foto colorida onde se vê um caminho de pedra cercado por vegetação exuberante, com um edifício e uma construção ao fundo, com um guindaste amarelo visível. O cenário é ensolarado, com um céu claro e azul.

Crédito: Divulgação/SOS Vale Encantado

Condomínios e espigões ameaçam 100 hectares de mangue e mata atlântica em Salvador

Praia de Jaguaribe e Parque Vale Encantado, Área de Proteção Ambiental, são os alvos das empreiteiras

Júlia Moa / 27/03/2024

Crédito: Divulgação/SOS Vale Encantado

A 200 metros do manguezal na foz do rio Passa Vaca, uma Área de Proteção Ambiental (APA) localizada no bairro de Patamares, em Salvador (BA), o caos está instaurado. Tratores e betoneiras orquestram uma sinfonia barulhenta que encobre o canto dos pássaros em ruas empoeiradas, cheias de buracos e com muito tráfego de carros e pedestres. Perto dali, na rua Fauna – vejam só que incongruência -, mais homens trabalham para edificar outro espigão, esse com cobertura duplex vista para o mar e o Selo IPTU Verde garantido pela prefeitura.

Em um breve passeio pela área próxima à orla da praia de Jaguaribe, é possível contabilizar, até agora, 13 empreendimentos imobiliários em obras e seis finalizados. Aos poucos, o cenário tropical típico do litoral baiano vai sendo esmagado pela rapidez da verticalização da cidade, que ameaça ainda destruir 1 milhão de m² (100 hectares) de mata atlântica existentes nas imediações.

“Manter em pé o que resta não basta, que a motosserra voraz faz a festa (…) Por que não deixamos nosso mundo em paz?”, questiona o cantor Gilberto Gil na canção Refloresta. Numa capital que, sem esconder tal intenção, está prestes a se tornar um gigante canteiro de obras a céu aberto, ambientalistas e militantes de distintos movimentos espalhados pela cidade pressionam o poder público para que atitudes sejam tomadas. O manguezal e a mata do parque Vale Encantado compõem mais um palco para esse confronto.

O economista Marco Antônio Santos Dias diz que o sombreamento provocado pelos espigões na praia de Jaguaribe já é uma realidade e que o local recebe uma menor quantidade de banhistas no período da tarde, justamente pela falta de sol, o que, a longo prazo, pode acarretar prejuízos à vida marinha e à qualidade da areia.

“Essa área, delicada e frágil pela presença de dois rios (Jaguaribe e Passa Vaca) próximos ao mar, está condenada. As ruas não suportam a construção desses espigões. Quando vierem os futuros moradores, isso vai virar um inferno de carros e de gente, tentando viver a ilusão de estar num verde que os seus próprios prédios derrubaram”, analisa Isa Trigo, atriz, que há mais de 30 anos reside em Patamares.

Ao lado de sua casa, originalmente uma área de manguezal cheia de caranguejos que, no decorrer dos anos, ela tratou de replantar diversas espécies de árvores no entorno (sendo hoje o único pedaço verde da rua), seu novo vizinho começa a dar as caras: um edifício de 20 andares está sendo erguido.

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Recentemente, foi divulgado na imprensa soteropolitana o Baralho do Crime Ambiental, expondo o retrato de 29 vereadores favoráveis à indústria da destruição, todos aliados do prefeito Bruno Reis (União Brasil). O leilão das áreas verdes, escolares e institucionais, realizado pela prefeitura soteropolitana entre 11 e 15 de março de 2024, diante da forte mobilização popular, fracassou, com apenas quatro terrenos vendidos dos 40 que a prefeitura colocou à venda.

Transtornos e preços altos

Segundo Isa, a SBE Engenharia, construtora responsável por duas obras grandes no bairro, a procurou e, dentro do possível, eles tentam não causar tantos prejuízos para os moradores da pacata rua de paralelepípedos. Os 64 apartamentos com previsão de entrega para 2026 estão sendo vendidos a partir de R$ 500 mil.

Durante o processo de apuração da reportagem, o bairro ficou 10 horas sem luz – o que vira e mexe acontece também com a água encanada. Isa acredita que a pane tenha ocorrido pelas demandas das obras na vizinhança.

Os preços nas redondezas estão aumentando, tanto no comércio como no aluguel de imóveis, seguindo a lógica da gentrificação [valorização acentuada de determinada área, que culmina na saída de moradores antigos em razão do aumento local do custo de vida], e todos os terrenos que estão sendo edificados os espigões, com pelo menos mais de 1.000 m2, pertenciam a antigos moradores que se mudaram para longe.

Em 1980, quando Isa construiu sua casa, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) não permitia o que está ocorrendo atualmente. A mudança do PDDU, perpetrada na gestão do ex-prefeito de Salvador João Henrique Carneiro (PMDB), abriu caminho para as edificações na primeira e segunda quadra da praia. Conforme a atriz, é uma área que deveria ser restrita e sofre sérios ataques desde 2008.

Esforço para proteger o parque

O grupo SOS Vale Encantado trabalha na preservação do Parque Vale Encantado, que abriga 1 milhão de m² de Mata Atlântica no bairro de Patamares, colado aos espigões. Considerado parque municipal desde 2007, é também uma Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA), por representar um dos biomas mais ricos em biodiversidade do planeta.

Para que a fauna e a flora dessa área sejam realmente protegidas, é necessário que ela se torne um Refúgio de Vida Silvestre, só que a grande incógnita é: por que o prefeito Bruno Reis ainda não assinou o decreto, aprovado em audiência pública desde 2020 [quando a cidade era administrada por ACM Neto, que nem sequer tocou no documento]? O PDDU de 2016 aprovou em artigo a mudança da categoria ‘parque’ para ‘unidade de conservação integral’ na área, aguardando apenas os estudos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).

“Existem atualmente dois grandes desmatamentos na região, um na área do Parque Biribeira e outro na área da Colina. Estamos aguardando um retorno do Ministério Público sobre informações e procedimentos de investigação referentes aos mesmos. A floresta que estava em pé não existe mais nestes dois locais. Estamos conseguindo proteger o Vale Encantado, porém o seu entorno vem sofrendo com desmatamento e, muitas vezes, adentrando em suas bordas e áreas de mata ciliar”, descreve Caroline Lorenzo, médica veterinária e integrante do SOS Vale Encantado.

Ela relata que em 2020 e 2021 a Câmara de Vereadores fez dois projetos de lei, um alterando o PDDU e outro alterando a Lei Orgânica do Município. Na alteração do PDDU, foram retiradas todas as zonas de proteção das áreas verdes da Avenida Paralela, uma das principais vias de Salvador, e de Patamares, além de reduzir o tamanho do Parque do Vale Encantado de 1 milhão m² para 610.000 m².

Para piorar, a LOM modificou diversos artigos de proteção ambiental autorizando secar e aterrar diques e lagoas. Só que como nem tudo é bagunça na terra dos orixás, e quem protege Salvador faz hora extra, as PLs foram suspensas e os ambientalistas rezam para alcançar a vitória com a derrubada definitiva desses infames projetos.

Catarina Lorenzo, surfista profissional e estudante do ensino médio, reconhece no Vale Encantado um regulador do clima que diminui o impacto das ondas de calor em Salvador. Se o Vale for devastado, todos irão sofrer, particularmente as comunidades periféricas que têm pouco acesso a ventiladores e ar condicionado. “Estamos com esse forte problema da dengue e, diferente do que estão propagando por aí, dentro das florestas esse mosquito não existe. O Aedes aegypti é encontrado com maior facilidade em espaços com construções feitas por humanos. Ter uma floresta por perto diminui a presença desses insetos e, automaticamente, impacta na saúde dos moradores”, avalia Catarina.

A capital baiana é privilegiada do ponto de vista ambiental, está localizada às margens do oceano Atlântico e é uma território peninsular; do outro lado, tem a Baía de Todos os Santos. É uma cidade circundada por água em todos os lados. Contudo, como explica a bióloga Tatiana Bichara, essa condição excepcional reflete fragilidades, pois a vegetação da cidade é como uma manta protetora para a natureza. Jaguaribe é uma área estratégica por apresentar vários ambientes no mesmo local: praia, manguezal, restinga e a floresta, fazendo com que toda a dinâmica costeira, marinha e continental se mantenha em equilíbrio. No entanto, o desmatamento desenfreado ocasionado pela intensa urbanização e especulação imobiliária está causando danos irreversíveis, um extermínio validado pelo poder público.

“Com tudo que está acontecendo, a destruição e o aterramento do manguezal, o rio Jaguaribe está demasiadamente eutrofizado [excesso de material orgânico na água]. Na semana passada, foi verificada uma coloração totalmente diferenciada da água do mar, fruto do despejo de esgoto do rio Jaguaribe, sem tratamento. No Vale Encantado, a lagoa foi totalmente tomada pelas macrófitas [plantas aquáticas], uma evidência da eutrofização na água”, alerta Tatiana, sem esquecer de mencionar o lixo nas praias e a necessidade de educação ambiental acessível a todos.

Foto colorida de um grupo de pessoas em um ambiente natural no manguezal do Parque Vale Encantado, em Salvador. Elas estão perto de um corpo d’água. As pessoas estão cercadas por vegetação densa e árvores com troncos e galhos tortuosos. Algumas delas parecem estar focadas em algo específico na área, enquanto outras estão olhando para a água. A vegetação é verde e exuberante, indicando que a foto pode ter sido tirada durante os meses mais quentes do ano. O céu não é visível devido à densidade das árvores e folhagens ao redor.

SOS Vale Encantado atua para aumentar nível de proteção do parque

Crédito: Divulgação/SOS Vale Encantado

Há uma década atuando na promotoria de habitação, urbanismo e meio ambiente, a promotora de justiça do Ministério Público da Bahia (MPBA), Hortênsia Gomes Pinho, lamenta não ter êxito no enfrentamento do problema de uma forma plena pelo MPBA. Ela salienta o atual contexto histórico de hegemonia do neoliberalismo e a falta de profundidade e sensibilidade do judiciário brasileiro a respeito das questões ambientais. O PDDU de 2016 permitiu uma verticalização maior da orla de Salvador, que sempre foi a “menina dos olhos” do mercado imobiliário. Tal condição está mudando a personalidade de todos os bairros com os inúmeros prédios que se alastram por todos os cantos.

“As soluções possíveis são a tentativa de composição negociada do conflito e a judicialização; esses são os remédios jurídicos propostos. Para que isso seja feito com sucesso, é imprescindível laudos técnicos que demonstrem as complicações ambientais e urbanas que o empreendimento irá causar, além do conhecimento da legislação municipal. O caminho vem sendo trilhado com os entendimentos desse momento histórico e o perfil da nossa sociedade”, aponta Hortênsia.

A respeito da revisão do PDDU de 2016, a promotora aconselha que nada deve ser feito com urgência ou pressa, e sim de maneira madura, participativa, democrática e, principalmente, com estudos técnicos, que não estão sendo feitos, os quais irão embasar as decisões tomadas. O MPBA está pressionando o município para a realização de tais investigações.

Sociedade não participa nem opina

O erguer de condomínios e espigões em Jaguaribe e na orla do Vale Encantado tomou força especialmente em 2021 e 2022, porém o aumento da especulação imobiliária na cidade é antigo, remontando ao início dos anos 2000 e já incluindo as bandas de Patamares.

“Nesta época, vários empreendimentos imobiliários se propuseram a atuar na região, vendendo a proposta de que, por serem construções planejadas, iriam ocupar e tomar conta dos espaços remanescentes de Mata Atlântica rica em biodiversidade. A sociedade civil criticou a iniciativa e se manifestou, garantindo algumas medidas de proteção para a natureza do território. De lá para cá, o perfil desses empreendimentos ao redor da orla tem mudado; os consumidores desses imóveis permanecem sendo pessoas brancas, escolarizadas e ricas, todavia os prédios estão surgindo na configuração de arranha-céus e a estrutura urbanística não comporta essa transformação”, reflete Juliana Ferreira, jornalista integrante do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá). Ela frisa a participação da prefeitura e do Governo do Estado nas aprovações de obras que beneficiam a especulação imobiliária, como por exemplo parte da canalização do rio Jaguaribe, Trobogy e Mangabeira, além da construção da avenida Tamburugy, que permaneceu embargada por anos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Em um documento encaminhado para o Ministério Público da Bahia (MPBA), ao qual tivemos acesso, escrito por Isa Trigo, foi feito o alerta que, caso todos os apartamentos de pelo menos sete prédios em construção sejam vendidos, aproximadamente 2116 novos moradores e 1189 veículos transitarão ao redor daquele trecho da orla até 2025. O levantamento surtiu efeito e auxiliou a interromper o leilão da prefeitura, em 2022, na área junto ao rio Passa Vaca.

Urbanistas e ativistas socioambientais nomearam um conjunto de leis de “boiadas urbanísticas”, por modificarem o PDDU e a Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo de Salvador sem estudos técnicos nem participação popular. Com mais de 95% da vegetação de Mata Atlântica destruída, a qualidade de vida na cidade, eleita o destino nacional mais desejado pelos brasileiros em 2024, de acordo com o Ministério do Turismo, é muito baixa. Tudo isso aconteceu com insignificante participação popular. As leis que afrouxam as regras de proteção ambiental em áreas da capital baiana já favoreceram os interesses imobiliários do empresário Carlos Suarez, um dos fundadores da empreiteira OAS, atualmente Metha, empreiteira que apareceu em seguidos escândalos de corrupção nos anos 1990 e 2000.

Como rede de apoio para enfrentar os turbulentos episódios em Patamares, Isa compõe um grupo de WhatsApp, com poucos moradores, para discutir as ocorrências e conta com o apoio jurídico oferecido por vereadores de oposição.

“Sabemos que essa destruição dos espaços verdes faz parte de uma ideia: a cidade do cimento, que serve para enriquecer poucos, basicamente. E os políticos no poder em Salvador seguem a tradição de Antônio Carlos Magalhães [liderança histórica da Arena, PDS e PFL, que se fortaleceu na ditadura militar, ex-governador e ex-senador, falecido em 2007] e da direita baiana, tendo maioria na Câmara dos Vereadores e também na dos Deputados”, argumenta Isa Trigo.

Sem resposta

As construtoras Kubo, JVX Empreendimentos, CBA Arquitetura, Moura Dubeux, Ferreira Ferraz e SBE Engenharia foram contatadas e não se manifestaram. Assim como a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), a Câmara Municipal de Salvador e a Secretaria Municipal de Sustentabilidade e Resiliência (Secis) não responderam ao contato da reportagem.

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