Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Contrato milionário de câmeras de segurança do Governo de Pernambuco enfrenta onda de problemas

Maria Carolina Santos / 04/07/2025
A imagem mostra uma avenida litorânea ampla e ensolarada, com alguns carros circulando. Do lado esquerdo, há coqueiros alinhados e, ao fundo, o mar e o céu azul. No centro da calçada, destaca-se um totem de segurança alto, azul e branco, equipado com câmeras e sensores no topo. Perto dele, há um painel eletrônico exibindo uma propaganda turística com a frase “Recife Te Espera”. À direita da avenida, aparecem prédios altos e modernos.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O cruzamento das avenidas Marquês de Olinda e Alfredo Lisboa, no Recife Antigo, é um Big Brother. Há pelo menos quatro pontos de câmeras de videomonitoramento. No Pina, a cena se repete: quem entra na avenida Antônio de Góes se depara com totens imensos com câmeras para segurança pública. Nesses dois pontos, porém, as câmeras da Secretaria de Defesa Social (SDS) do Governo de Pernambuco talvez não estejam funcionando como deveriam.

Em uma análise técnica, datada de 5 de março de 2025, a Secretaria de Defesa Social apontou várias irregularidades nesses dois pontos de monitoramento. No PCI – sigla para ponto de captura de imagens – no Recife Antigo foram constatadas imagens com um efeito pêndulo, causando gravações “desestabilizadas”. Além disso, tanto o PCI da Marquês de Olinda quanto o totem do Pina não tinham isolamento elétrico aplicado na superfície – do nível do solo até 3,30 metros de altura – para mitigar riscos de choque elétrico.

Os problemas apontados no Pina e no Recife Antigo são a parte mais palpável de uma série de problemas do contrato milionário firmado entre o Governo de Pernambuco e a empresa paulista Teltex Tecnologia S.A. para a implantação de um sistema integrado de videomonitoramento público. Para um período de cinco anos, o governo assinou um contrato de R$ 122,5 milhões com a empresa, que tem sede em São Paulo, mas muitos contratos no estado de Pernambuco, incluindo clientes como o Tribunal de Justiça.

Desde 2023, o estado estava sem contrato para videomonitoramento em vias públicas. Pelo contrato, a Teltex instalaria 1.347 câmeras, infraestrutura de transmissão e centros de gerenciamento de imagens em vias públicas do estado, cedendo os direitos patrimoniais e propriedade intelectual para o Governo do Estado. Documentos oficiais aos quais a reportagem da Marco Zero teve acesso, porém, indicam uma série de descumprimentos contratuais por parte da Teltex. Há ainda uma ação judicial que pode comprometer a entrega de, pelo menos, 150 totens.

No começo de abril, a SDS notificou a empresa por não ter instalado 180 dos 200 Pontos de Captura de Imagens (PCIs) que estavam previstos na primeira leva de instalações do contrato. Mesmo após ter sido concedida uma prorrogação de prazo para a execução, a Teltex não cumpriu com a instalação e foi novamente notificada no final daquele mês.

Houve ainda falha no fornecimento dos projetos de instalação dos equipamentos, que deveriam conter, no mínimo, o layout e localização dos equipamentos, e o encaminhamento dos dutos de rede de comunicação e alimentação elétrica.

O contrato com a Teltex também foi impactado por movimentações financeiras significativas. Dois empenhos para a Teltex Tecnologia S.A. foram anulados pela SDS em 7 de fevereiro de 2025. Os valores anulados foram de R$ 22.200.909,00, correspondente ao valor anual do contrato, e R$ 1.771.200,00. A justificativa para as anulações, conforme o documento, foi “possibilitar um controle específico do orçamento/financeiro”, o que indica que os empenhos serão feitos serviço por serviço.

<+>

Empenho é  o documento que atesta que o governo reservou o dinheiro a ser pago quando um bem adquirido for entregue ou o serviço contratado for concluído. Isso ajuda o governo – municipal, estadual ou federal – a organizar os gastos pelas diferentes áreas do governo, evitando que se gaste mais do que foi planejado.

Esta explicação foi extraída do Portal da Transparência do Governo Federal.

Houve ainda uma tentativa da Teltex de reduzir a garantia contratual exigida. A empresa solicitou a prestação de uma garantia proporcional ao valor da primeira Ordem de Fornecimento (R$ 3.081.960,00), argumentando que o valor total anual do contrato (R$ 22.950.900,00) ainda não havia sido empenhado em sua totalidade.

Essa diminuição no valor da garantia teria um efeito prático bastante favorável para a Teltex: influenciaria diretamente no valor de uma possível multa compensatória que pode ser aplicada em caso de descumprimento contratual, que varia de 10% a 20% sobre o valor da garantia, o que geraria prejuízos à administração pública.

No parecer jurídico ao qual a Marco Zero teve acesso, de 18 de março, a Gerência Geral de Assuntos Jurídicos e Estratégicos da SDS rejeitou o pedido da Teltex, ressaltando que a garantia de 5% sobre o valor anual do contrato é obrigatória, conforme edital e contrato.

A SDS também apontou que a fintech apresentada pela Teltex como fiador contraria expressamente normas do Banco Central do Brasil, que não autorizam esse tipo de empresa a oferecer fianças bancárias. Em 12 de junho de 2025, uma comunicação da secretaria executiva de Gestão Integrada à Gerência Geral do Centro Integrado de Operações de Defesa Social opinou pela possibilidade de instauração de um Procedimento de Apuração e Aplicação de Penalidade (PAAP) contra a Teltex, em resposta aos descumprimentos.

<+>

No dia 18 de fevereiro deste ano, Raquel Lyra assinou o contrato para a criação de centros de gerenciamento de videomonitoramento online das vias públicas com capacidade para 2 mil câmeras, quantidade anunciada pela governadora, apesar do contrator prever a aquisição de somente de 1.347 câmeras, que seriam divididas da seguinte forma:

275 unidades de câmera fixa.
378 unidades de câmera fixa com LPR (para identificação de placas de veículos)
544 unidades de câmera móvel PTZ – tipo de câmera que possui a capacidade de se mover horizontalmente (Pan), verticalmente (Tilt) e de aproximar ou afastar a imagem (Zoom).
150 unidades de câmera panorâmica 360º (sem áudio)

O contrato não usa as palavras “reconhecimento facial”, mas estão previstas no contrato licenças de uso de software para os seguintes analíticos de imagem, além do LPR:

Detecção de aglomeração: Funcionalidade que permite ao sistema identificar e alertar sobre a formação de aglomerações de pessoas em áreas monitoradas

Busca forense: capacidade de pesquisar rapidamente grandes volumes de gravações de vídeo para encontrar eventos, objetos ou pessoas específicas após um incidente, auxiliando em investigações. Os documentos não especificam se inclui reconhecimento facial

Loitering: “vadiagem”, em inglês. Em videomonitoramento, refere-se a uma funcionalidade que detecta e alerta quando uma pessoa ou objeto permanece em uma área por um período de tempo incomumente longo ou pré-definido.

Video Management System – VMS: O VMS é a plataforma central que gerencia e controla todo o sistema de videomonitoramento. Ele permite a captação, transmissão, processamento, análise, visualização e gestão de eventos das câmeras

Decisão judicial pode afetar contrato

A Teltex Tecnologia S.A. ainda está envolvida em uma disputa judicial com a Helper Tecnologia de Segurança S/A por infração de propriedade industrial. A Helper alega que a Teltex, em conjunto com a Forward Intelligence Innovation Hub Ltda (Fintih), está produzindo, usando e comercializando totens denominados Kule360, que violam a patente de invenção e o registro de desenho industrial da Helper. A acusação inclui a alegação de que a Fintih e a Teltex estariam sendo utilizadas em uma manobra para burlar uma liminar anterior obtida pela Helper contra a Banksystem Sistemas & Consultores Ltda., que fornecia o mesmo produto.

No processo, a Helper anexou um laudo técnico da Universidade Tecnológica Federal do Paraná que afirma que há “notória semelhança” entre o produto da Helper e o Kule360. Em 29 de janeiro de 2025, uma decisão liminar determinou que a Fintih e a Teltex se abstivessem imediatamente de produzir, usar, colocar à venda, vender, fornecer ou importar o Kule360, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. A decisão também ordenou a remoção dos totens já instalados em cidades como Paranaguá (PR), Cajamar (SP) e Louveira (SP).

A imagem mostra uma esquina do Recife Antigo com prédios antigos e imponentes, em estilo histórico e fachada branca. O edifício principal está parcialmente coberto por andaimes e uma tela verde, indicando restauração. Na calçada, destaca-se um equipamento moderno de vigilância: uma estrutura metálica azul com uma câmera e um alto-falante no topo, usada para monitorar a rua. Alguns carros passam pela via asfaltada em frente ao prédio. O céu está claro e azul, iluminando o cenário.

Teltex está proibida pela Justiça do Paraná de produzir, usar e vender os totens

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

No entanto, a Teltex recorreu e, em 13 de fevereiro de 2025, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) suspendeu a ordem de remoção e inutilização imediata dos totens, mas manteve a determinação de abstenção de produção, uso e comercialização, considerando que os prejuízos materiais poderiam ser ressarcidos posteriormente e que a remoção imediata poderia impactar o interesse público na segurança.

Ou seja, a Teltex ainda está sob proibição judicial para não utilizar, comercializar ou fornecer esses produtos. O contrato com o Governo de Pernambuco prevê a instalação de 150 desses totens com câmeras de 360 graus.

O contrato também tem a exigência de cessão de direitos patrimoniais para o Governo do Estado, após o fim do contrato. Essa cessão de direitos patrimoniais abrange o “fornecimento de todos os dados, documentos e elementos de informação pertinentes à tecnologia de concepção, desenvolvimento, fixação em suporte físico de qualquer natureza e aplicação da obra”. Torna ainda mais relevante o processo para o Governo do Estado, já que existe a possibilidade da Teltex perder a propriedade intelectual da tecnologia utilizada nos totens que já instalou em Pernambuco.

Para a advogada Raquel Saraiva, do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.Rec), a situação da empresa (Teltex) deveria ter sido muito bem analisada já na fase de licitação. “Mesmo a recuperação judicial não impedindo a participação em licitações, o Estado tem o dever de fiscalizar se a empresa será capaz de cumprir o contrato, especialmente quando há uma disputa judicial sobre a tecnologia a ser cedida para o Estado ao final do contrato”, afirmou. “Caso a empresa seja impedida de cumprir com o contrato por conta dessa demanda judicial, mesmo que o processo ainda esteja em andamento e a empresa possa, teoricamente, fornecer a tecnologia neste momento, isso pode gerar um prejuízo para o Estado, pois o fornecimento da tecnologia já não vai mais poder ser feito se a empresa for condenada”, diz.

“Procedimentos estão sendo adotados”, explica SDS

A Marco Zero questionou a Secretaria de Defesa Social sobre a aplicação de multas contra a Teltex e sobre o andamento da execução do contrato. A SDS não respondeu às perguntas, mas informou que “todos os procedimentos administrativos necessários à execução plena do contrato, bem como de apuração de eventuais descumprimentos, estão sendo adotados pela SDS, respeitando-se as exigências legais aplicáveis e a supremacia do interesse público”.

A reportagem também procurou a Teltex e enviou uma série de perguntas sobre o contrato com o Governo de Pernambuco, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Auditoria especial do TCE-PE

As más notícias sobre a Teltex começaram já quando a empresa ganhou a licitação para o contrato, em novembro de 2024. Na época, foi amplamente noticiado que a empresa estava em recuperação judicial, negociando uma dívida de mais de R$ 40 milhões. Esse fato, no entanto, não era um impedimento para participar da licitação – a Teltex ficou em segundo lugar e assumiu após a desclassificação da primeira colocada.

Logo depois, a empresa Painel Multiserviços LTDA solicitou ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE) uma medida cautelar contra a decisão que declarou a Teltex Tecnologia S.A. como vencedora provisória da licitação. A Painel alegou uma série de irregularidades, que iam desde o elevado número de processos judiciais que a Teltex tinha em trâmite até a penalização de impedimento imposta pelos Correios contra a empresa, além de ajuda de outra empresa para ganhar a licitação.

O TCE-PE, contudo, após ouvir tanto a Teltex quanto o Governo do Estado, realizou dois pareceres técnicos que não consideraram as acusações como impedimentos para a Teltex executar os contratos. Todavia, no mês de março instaurou auditoria especial para acompanhar o cumprimento do contrato.

Sai vadiagem e entra loitering, mas problema continua

Ainda em julho de 2024, quando o Governo de Pernambuco anunciou que iria contratar nova empresa para fazer o videomonitoramento, entidades da sociedade civil chamaram a atenção para um termo do edital: as câmeras iriam detectar “vadiagem”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE) disse na época que “o uso do termo ‘vadiagem’ suscita preocupações sérias sobre a potencial violação de direitos humanos e a perpetuação de práticas discriminatórias”.

No contrato, o termo foi mantido, mas colocado em inglês, como loitering. Para a advogada Raquel Saraiva, do IP.Rec, o fato do Governo do Estado pagar para ter câmeras com essa funcionalidade é uma clara discriminação, pois atinge desproporcionalmente pessoas em situação de rua, um grupo já vulnerável. “Vadiagem é uma contravenção penal de 1941, já desconsiderada pela jurisprudência, o que torna sua inclusão em um edital de segurança pública problemática”, diz.

Raquel também chama a atenção para a mudança de linguagem e termos usados pela SDS. “Por exemplo, a Secretaria não afirma mais que essas câmeras vão ter reconhecimento facial, diz que vai ter ‘inteligência artificial’, porque já há vários casos de prisões de pessoas inocentes. Reconhecimento facial é uma tecnologia falha, principalmente quando analisa imagens de pessoas negras. Agora, no contrato trocaram ‘vadiagem’ por loitering numa tentativa de dificultar a compreensão pública do seu real significado”, explica.

Na época do edital, a SDS afirmou que manteria a exigência da funcionalidade porque “criminosos têm como modus operandi estudar o local e ficar “perambulando” pela rua onde, por exemplo, vão praticar um assalto — e essas atitudes consideradas suspeitas também são estudadas pelos policiais; O “loitering” é usado ainda para identificar situações incomuns que podem gerar um alerta para a inteligência; Assim como acontece com as câmeras de reconhecimento facial, que se baseiam em fotos de foragidos, a tecnologia é apenas um indicativo que auxilia as forças de segurança e jamais funciona como veredito ou substitutivo da atuação das polícias”.

As câmeras da SDS também poderão indicar a formação de grupos de pessoas, como em protestos. “Os agentes responsáveis pela operação das câmeras precisam ser capacitados não apenas tecnicamente, mas também em segurança da informação e direitos humanos, para evitar abusos. O direito de associação e de reunião é assegurado pela Constituição. Não deve ser violado e a tecnologia não deve ser usada para perseguições ou intimação sob pretexto de detecção de aglomerações”, diz a advogada, que alerta para a complexidade de um contrato que lida com questões tão sensíveis quanto a captura e processamento de dados biométricos das pessoas que passam por essas câmeras.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org