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Ivan Moraes Filho debate o Ocupe Estelita com Samarone Lima

Samarone Lima / 13/06/2015

Os dois participaram da passeata do dia cinco de junho de 2015 organizada pelo movimento Ocupe Estelita em repúdio à aprovação-relâmpago, pela Câmara de Vereadores, da lei que instituía o Plano Específico do Cais José Estelita. Seguiram pelo mesmo caminho e, de maneira geral, defendem os mesmos objetivos. Apesar disso, os jornalistas Ivan Moraes Filho e Samarone Lima divergem em relação à condução do movimento. Conheça o que eles pensam sobre o assunto na estreia da seção Diálogos, um espaço reservado para o debate de ideias.

Afinal de contas, quem são esses estelitas?

Por Ivan Moraes

Se um centavo surgisse do nada toda vez que alguém pergunta quem são as lideranças do Movimento Ocupe Estelita, já teríamos dinheiro pra comprar o terreno do Cais, arrematado num cabuloso leilão nos idos de 2009.

Pra quem olha de longe e mesmo para algumas pessoas que têm-se inserido recentemente na luta pelo direito à cidade, parece difícil compreender como funciona um grupo em que seus integrantes são tão diversos entre si. A imprensa, então, às vezes fica doidinha (muitas vezes com certa razão).

Como pode ter tanta repercussão uma turma que não tem hierarquia, coordenação, plano estratégico institucional e todos esses paranauês que sempre foram marca de organizações sociais, ONGs, articulações, sindicatos, partidos políticos e essa tuia de sujeitos que historicamente encabeçaram os processos de conquista de direitos no Brasil?

E que, mesmo assim, tem conseguido empacar, por três anos (até agora) os planos milionários de empresas que nunca tinham encontrado obstáculo à sua sanha verticalizadora em nossa cidade?

O que algumas pessoas enxergam como fraqueza é talvez o que mais representa a força desse movimento – e de muitos outros surgidos nesse século e que têm conquistado cada vez mais adeptos no país inteiro (para ficarmos em nosso quintal).

Engana-se quem pensa que se não tem liderança não tem ordem.

Foto: Enock Carvalho/Divulgação

Foto: Enock Carvalho/Divulgação

Pelamor, não diga que o bicho é feio só porque você não o conhece. Não diga que uma coisa não presta somente porque você não a compreende. Vá pelo cara: você merece esse esforço.

Quem se reúne em volta do #ocupeestelita, se reúne em torno de um consenso: querer uma cidade planejada para o bem de todas as pessoas, construída de forma democrática por essas mesmas pessoas.

Pronto.

Não tem ficha de filiação, não tem carterinha de militante. Não tem catraca na porta. Não tem porta.

Assim, são estelitas os bravos e bravas que acamparam no terreno do Cais para impedir a demolição dos armazéns no ano passado.

Como também é estelita quem participou dos tantos atos públicos convocados pelo movimento.

Os professores que levaram o assunto para suas salas de aula.

Jornalistas que, dentro das redações, procuraram driblar a censura e visibilizar a necessidade de pensarmos o desenvolvimento de forma diferente.

Quem contribuiu para as frequentes “vaquinhas” ou comprou produtos da “lojinha”, únicas fontes de financiamento do movimento.

Profissionais do direito que encaminharam ações na justiça contra o Novo (sic) Recife.

A turma do design, da escrita, da música, do cinema, das artes plásticas e cênicas que dedicou suas habilidades artísticas para ampliar a ressonância do que está acontecendo na cidade.

Quem botou na janela de casa uma bandeira do movimento.

Quem atua nas diversas esferas do poder público e, dentro de suas funções, procura fazer com que a população seja ouvida, que o destino da cidade seja mais de gente e menos de concreto.

Quem optou pela militância partidária, nas mais diversas siglas, quando leva a discussão para o interior de suas legendas e, consequentemente, para os legítimos espaços de representação da sociedade nas casas legislativas.

Quem, por qualquer motivo, não foi às ruas, mas puxou uma conversa franca sobre o tema no trabalho, na mesa de bar, na parada de ônibus ou no almoço da família. Compartilhou posts na internet.

Foto: Marcelo Soares/Divulgação

Foto: Marcelo Soares/Divulgação

É natural que, em alguns momentos, algumas pessoas acabem aparecendo mais que outras. Ou porque estão presente mais vezes em atos do movimento. Ou porque pedem a palavra com mais frequência nas assembleias. Ou porque postam muito nas redes sociais. Ou simplesmente porque alguém precisa dar uma entrevista sobre um processo que acompanhou mais de perto. Chamar essas pessoas de “lideranças” pode servir pra dar uma resposta fácil e simples à sua própria compreensão. Mas eu sugeriria matutar mais um pouquinho.

Também é lógico que há relações de poder. E em poucos grupos se percebe o debate sobre essas relações ganhar tanta reflexão. Algumas conversas são chatas, são desconfortáveis a ponto de em muitos ambientes serem ignoradas, atropeladas. Não nos chamados ‘movimentos horizontais’. Não no MOE, não na Marcha da Maconha nem na das Vadias, só para citar outras duas mobilizações que admiro.

Dizem que pra entender relações de poder a pessoa tem que ler Foucault. Mas eu não tô aqui pra te explicar Foucault. Até porque eu nunca li nada desse cabra.

Sem as tais lideranças, buscando conviver com suas eventuais divergências e com pautas bem definidas, essa rapaziada vai comendo pelas beiradas sem esquecer de, vez em quando, dar uma colherada bem grande no meio do prato.

E se não for, eu xóxi.

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Notas de uma passeata

Por Samarone Lima

As notícias sobre o movimento Ocupe Estelita chagam rápidas em minha vida. Minha companheira, a jornalista e bailarina Silvia Góes, desde o começo está envolvida. A cada manobra envolvendo o “Novo Recife” e a Prefeitura, sua indignação aumenta. A minha também.

Mas não sou um militante do Ocupe. Milito no mundo das bibliotecas e acesso da galera menos favorecida aos livros e à leitura. Minha energia vai para essa causa, fora umas palestras em escolas públicas sobre literatura ou sobre a ditadura, tema que pesquiso e escrevo há um bom tempo.

No dia 17 de junho de 2014, quando a Tropa de Choque abusou do spray de pimenta, bala de borracha e gás lacrimogêneo para tirar umas 50 pessoas que ocupavam o espaço, eu estava no bar Princesa Isabel, tomando umas e me preparando para ver Brasil x México, pela finada Copa de 2014. Quando soube das brutalidades, fui ao local com Silvinha e alguns amigos. Deu para ver o resto da violência. Os policiais atiravam bala de borracha até numa turma que estava reunida pacificamente, debaixo de uma árvore, decidindo os rumos do movimento.

Enock Carvalho/Divulgação

Enock Carvalho/Divulgação

A passeata do dia cinco de junho (quase um ano depois), marcada para as 16h, prometia ser uma das maiores, graças à aprovação-relâmpago, pela Câmara de Vereadores, da lei que instituía o Plano Específico do Cais José Estelita. Mesmo estando fora do Recife, o prefeito Geraldo Júlio sancionou imediatamente a lei.

Munido do meu caderninho de anotações, fui à concentração, na Praça 13 de Maio, junto à Câmara de Vereadores. Tentaria captar o clima da manifestação. Quando cheguei, a Câmara já estava fechada. Muitos amigos, conhecidos, professores universitários, artistas. Pela quantidade de gente, dava para perceber que o movimento estava mais robusto.

Na saída, o cruzamento da rua do Príncipe com a Cruz Cabugá foi fechada, deixando na espera dezenas de ônibus que vinham da rua do Príncipe, rumo ao cento da cidade. Policiais acompanhavam tudo, e alguns motoqueiros tentaram furtar o bloqueio, mas nada de grave aconteceu.

Lentamente, a passeata foi seguindo em direção à rua do Hospício. Ao passar defronte à antiga Escola de Engenharia, lembrei que foi ali que aconteceu a grande mobilização dos estudantes, quando a notícia do Golpe Militar já era uma realidade. Da Escola saiu a única e corajosa passeata desarmada, pela avenida Conde da Boa Vista até o Palácio do Campo das Princesas, onde foi detida a tiros. Dois jovens morreram, naquele fatídico 1º de abril de 1964: Ivan Rocha Aguiar e Jonas Albuquerque de Barros. Não esqueçamos os nomes.

Novo bloqueio na Conde da Boa Vista. Olhei o carro de som que alugado para divulgar as propostas do Movimento e explicar o que era aquele ato. Era um desses carros típicos de manifestações, geralmente uma Veraneio ou Kombi, mas com um detalhe – o som era péssimo, quase inaudível, a não ser que você ficasse bem próximo dele. Não dava para entender quase nada do que as pessoas diziam. Quem estava nos ônibus, num calor infernal, só chegava um alarido esquisito.

Enock Carvalho/Divulgação

Enock Carvalho/Divulgação

Já estava escuro, quando a passeata, movida por uma espécie instinto coletivo, se movimentou novamente, parando no cruzamento da rua da Aurora com rua do Sol. A ponte Duarte Coelho foi totalmente ocupada.
Como não havia qualquer orientação, as paradas eram longas. Algumas palavras de ordem, o discurso no carro de som que ninguém entendia bem, e a expectativa pelo recomeço da caminhada davam o tom.

Tudo o que eu sabia era que seguiríamos até o Cais José Estelita. Como gosto de correr de manhã, sabia que o percurso daria cerca de 3,5 km. Mas a previsão era demorar muito.

Ao passar defronte aos prédios conhecidos no Recife como as “Torres Gêmeas” (dois prédios com mais de 140 metros de altura), construídas no perímetro do entorno de uma área histórica tombada a nível federal, uma parte do grupo atravessou a rua e passou a dar vaias ostensivas nos prédios. Eu nunca tinha presenciado uma “vaia ao concreto”.

Alguém pegou o microfone, fez um pequeno discurso e avisou:

– “A gente quer que essas torres caiam”.
Achei esquisito, desejar uma tragédia, mas tudo bem, coisa de passeata.

Como havia uma enorme “escolta” policial, surgiu a frase conhecida, em direção aos PMs:
– “Você aí fardado, também é explorado!”

E depois:

– “Não acabou/Vai acabar/A Polícia Militar”.

Depois, a PM também foi chamada de “Cachorrinho de Gê-Ju”, numa referência ao prefeito, Geraldo Júlio.
Assembléia – Já eram 19h30, quando a passeata finalmente chegou ao Cais José Estelita. Eu, sinceramente, já estava achando aquilo arrastado, demorado, cansativo. Eu também sentia falta de gente que falasse algo em torno do Movimento, os desafios, os próximos passos.

Muita gente sentou no meio da avenida (já que o trânsito havia sido fechado previamente, nos dois sentidos). Como se imaginava, a Tropa de Choque já estava posicionada na parte principal.

Depois de mais uma espera, um jovem tratou de puxar um discurso bem ao estilo dos anos 1970. Disse que iria falar algumas coisas, e que as pessoas deveriam repetir, para as que estivessem atrás, pudessem também ouvir. Nesta hora, o carro de som foi esquecido – ou estava quebrado, ou era mais original ser na base do grito, não sei.

Ele: “Gente, nossos objetivos…”

Multidão: “Gente, nossos objetivos…”

Ele: “Foram plenamente alcançados…”

Multidão: “Foram plenamente alcançados…”

Ele: “Agora, temos que pensar…”

Multidão: “Agora, temos que pensar…”

Como era no improviso, às vezes era engraçado, porque ele não encontrava a palavra adequada.

Essencialmente, era um resumo da passeata e uma preparação para novos atos. Uma das frases finais chamava a atenção, porque o rapaz dizia que a luta continuaria, até que conseguissem “derrubar este prefeito”.
Fiquei na dúvida se era uma opinião pessoal ou do Movimento. Espero que tenha sido apenas um rompante do jovem, já que o prefeito foi eleito democraticamente.

Ao final do discurso, uma discussão final. A multidão decidiria se a passata iria “para cá ou para lá”.
“Para cá” era voltar para o centro do Recife, pelo mesmo trajeto da vinda. “Para lá”, era seguir em frente, para a Zona Sul da cidade.

Venceu a proposta de seguir rumo a Boa Viagem. Alguém ao meu lado sugeriu que “Ocupasse o RioMar”, luxuoso shopping-center, a dois quilômetros dali. A multidão se moveu novamente. Tudo que eu queria, àquela altura, era ir para um bar, sentar e tomar uma cerveja geladíssima.

Já eram 20h36, quando houve uma natural dispersão. O trânsito estava em blecaute completo, em vários sentidos. Eu, minha companheira e dois amigos seguimos a pé, pelo viaduto João Paulo II, que vai dar na avenida Agamenom Magalhães. Do nosso lado, nem sombra qualquer tipo de veículo. Dou outro, que iria para a Zona Sul, uma fila de carros na contramão, tentando voltar. A cidade estava vivendo seu caos do transito. A caminhada de volta, calculei, seria longa.

Num lance de sorte, quase um milagre, uma Van passou pelo nosso grupo e parou. “Vamos com a gente”, falou Jônatas Campos, jornalista amigo, que também participara da manifestação. Não sei onde ele conseguiu aquele transporte.

Fomos para o bar de um amigo, onde tinha algumas pessoas do movimento, que também tinham acabado de chegar da manifestação. O clima era de animação com o crescimento das ações e os apoios. Eu discordei de várias coisas. Discuti sobre a falta de organização da passeata, a indefinição de um roteiro mínimo, a péssima qualidade do carro de som, a quantidade de horas de uma manifestação, o “anonimato” das lideranças (pelo menos na passeata), para um Movimento que, literalmente, parou a cidade – e vem lutando arduamente para conseguir frear a máquina midiática da Prefeitura. Discuti com Ivanzinho, velho amigo de muitas outras causas, e com outras pessoas do Ocupe.

Recebi várias explicações sobre a “horizontalidade do movimento”, a “ausência de coordenação” e outras definições que me pareceram bem modernas, mas com alguns impasses e contradições, que esbarram na vida real. Tenho muitas dúvidas se as milhares de pessoas que estavam em ônibus lotados, voltando para casa, pelo menos imaginavam o que estava acontecendo. Discordei tanto, que teve uma hora que cansei de falar.

Ao final de tudo, senti o óbvio – estou ficando é velho mesmo.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.