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Em protesto contra racismo, há três meses comunidade quilombola ocupa escola no Piauí

Marco Zero Conteúdo / 09/05/2023
grupo de pessoas, de várias idades, espalhadas pelo hall de entrada da escola Quilombola José Félix de Almeida, cujo nome está pintado em letras azuis na fachada branca da escola.

Crédito: O Corre Diário

por Sarah Fontenelle Santos e Maura Vitória, publicado originalmente no site Ocorre Diário

O conflito que já dura mais de 90 dias entre a Comunidade Quilombola Macacos e a Prefeitura Municipal de São Miguel do Tapuio, no norte do Piauí, dá sinais de mais negligência e falta de diálogo. Em audiência no último 19 de abril, a prefeitura enviou dois representantes sem autorização para negociação, dificultando a resolução do conflito. 

Moradores e principalmente as crianças da comunidade, continuam com seus direitos violados sem nenhum tipo de satisfação dos gestores públicos, que preferem tratar a situação sob a lei do silêncio, inclusive, procurados duas vezes por nossa equipe de reportagem, não responderam aos nossos questionamentos.

Segundo o defensor público da União Benoni Ferreira Moreira, a comunidade se manifestou junto à DPE e a DPU, reiterando o interesse em desocupar a escola, desde que o município retornasse a cumprir direitos historicamente conquistados pela comunidade. Maria Felix, moradora da comunidade, afirma que o processo está desgastante, mas que não vão desocupar a escola sem garantia de resultados positivos para a comunidade.

Por que a comunidade ocupou a escola? 

O que motivou a comunidade a fazer esse movimento? Desde que essa gestão municipal tomou posse, em janeiro de 2021, a comunidade vinha tentando diálogo para ser atendida em suas demandas. Passou-se o primeiro ano da gestão e o município não dava o retorno sobre solicitações de reuniões, conversas.  

Passado um ano, no dia 13 de maio de 2022, a comunidade fez um seminário na própria comunidade sobre a falsa abolição da escravidão no Brasil e a secretaria municipal de Educação começou a colocar obstáculos para o evento. Como o seminário era uma sexta-feira, a secretária alegou que era dia útil e não poderia interromper as aulas, ainda que o prédio da escola seja único espaço que a comunidade dispunha para isso. 

Diante disso, a comunidade procurou a Defensoria Pública da União para saber se tinham o direito de realizar a atividade. Recebendo resposta positiva, resolveu-se por dar continuidade à organização. Diplomaticamente, os quilombolas convidaram todos os representantes de órgãos municipais, representantes da Defensoria Pública da União, da Defensoria Pública Estadual do Piauí, secretaria estadual de Assistência Social e Cidadania e outros parceiros. Sucedeu-se uma discussão crítica no evento que ficou intitulado como 13 de maio: a falsa abolição.  

O final do evento trouxe uma análise da situação da comunidade e como de praxe, acerca da postura de movimentos sociais ou comunitários que buscam direitos, chegou-se a um documento detalhado de reivindicações, que foi enviado, com o detalhamento necessário, para cada órgão destinatário da demanda elencada. 

Foi o suficiente para serem respondidos com represálias por parte da gestão municipal. Maria Felix lembra que, após esse momento, as perseguições na escola pioraram, com professores e funcionários incutindo uma ideia de vergonha nos estudantes por serem quilombolas, deboches e descumprimento de acordos formais e da lei. 

“A escola está na comunidade, mas a comunidade não está na escola”

Dentre as violações mais flagrantes está a tentativa da secretaria municipal de Educação de não colocar a palavra “quilombola” na fachada da escola, o que já havia sido decidido pela própria gestão municipal. Após isso, a comunidade buscou a câmara de vereadores, que também garantiu o direito de manter o nome e, mais uma vez, a diretora tentou descumprir, mas a comunidade insistiu e manteve-se o nome. 

A comunidade também passou a ser impedida de usar a escola como de costume para reuniões, eventos culturais e novenas. Por isso, a comunidade vem afirmando em suas assembleias: “A escola está na comunidade, mas a comunidade não está na escola”.

O defensor Benoni Moreira lembra que o direito à educação quilombola não existe apenas para a comunidade Macacos, mas é um direito de todas as pessoas quilombolas e deve ser cumprido. Segundo dld, as escolas quilombolas têm um incremento de 30% a mais na merenda escolar do que as escolas tradicionais e que esse direito não está sendo respeitado. 

Além disso, a alimentação das escolas do campo, elas devem ser prioritariamente comprada da Agricultura Familiar, qo que também não está acontecendo, apesar da verba ser repassada diretamente pelo Ministério da Educação (MEC) para o município. 

Maria Felix, destaca também que a alimentação na escola está vindo muito empobrecida. “Depois do novo gestor, a gente teve acesso à licitação da merenda escolar e é totalmente diferente do cardápio que está sendo ofertado. Só tem carne moída, leite com cuscuz, leite com biscoito, é basicamente leite e alguma coisa”, elenca os problemas. 

A questão se generaliza em outras escolas “E essa reclamação está em todas as escolas de São Miguel do Tapuio e não tem diferença no cardápio das outras escolas para a comunidade quilombola, violando nossos direitos”, acrescenta Maria Felix. 

Maria lembra também que o município, na gestão anterior, já vinha se adequando à questão do uso de alimentos certificados e aprovados enquanto pertencente à Agricultura Familiar e muitos agricultores locais já estavam aptos a fornecer alimentos para a escola, mas esta gestão não tem levado isso em consideração. 

A outra questão é que quando se fala de escola quilombola deve haver um incremento de disciplinas que trabalhem a questão quilombola e a própria história da comunidade, por isso, que já se prevê o incremento no recurso, explica Benoni. Outra violação muito grave está na violação do direito à consulta prévia assegurado pela convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Acrescenta-se ao rol de flagrantes desrespeitos o fato de que a escola possui um conselho onde a comunidade não participa. Aqui, foi adotada a tática de colocar funcionários com filhos na escola, que não tenha desacordo com a direção, para compor o conselho, dando-lhe legitimidade ao menos em termos formais, mas na prática se constitui em nova violação, argumenta a comunidade. 

Linha do tempo do conflito

A ocupação teve início no dia 6 de fevereiro de 2023, quando deveria ter iniciado as aulas, mas a comunidade avaliou que não faria sentido, já que a escola vinha deseducando seus estudantes com práticas racistas e humilhações.  

No dia 8 de março houve uma reunião de conciliação, onde foi apresentado um termo de ajustamento de conduta com pautas, como a melhoria da merenda escolar de acordo com escolas quilombolas, consulta prévia de acordo com a convenção da OIT e implementação da educação quilombola na escola, saúde quilombola, dentre outras.

O prefeito Pompilio Evaristo Filho (PSD) recebeu a proposta e disse que não teria como dar resposta naquele momento, daria no fim da tarde, mas ao final desse primeiro prazo, disse que precisaria de mais 15 dias. Depois de sucessivas tentativas por parte da comunidade, o prefeito afirmou que aceitaria a substituição dos professores e a comunidade pediu que fosse assinado o termo de compromisso. O prefeito se recusou e a comunidade por todas as violações que já passou, decidiu continuar na ocupação. 

No dia 30 de março, a Secretaria de Educação publicou portaria transferindo as crianças para uma unidade escolar fora do Quilombo, considerada outra ação racista que fere os direitos quilombolas ao ter educação que se adeque à realidade e aos modos de vida locais.  

Fechado o diálogo ainda mais, o prefeito entrou com ação de reintegração de posse e transferiu as aulas dos estudantes para uma outra escola. Com isso, a Defensoria Pública do Estado em parceria com a Defensoria Pública da União, entrou com ação cível pública para garantia de direito reivindicado pela comunidade e suas diversas pautas. 

 Em 19 de abril, como já mencionado, houve audiência judicial, onde o prefeito demonstrou mais uma vez negligência enviando um preposto e um advogado sem poderes de negociação. 

Na ocasião, o Ministério Público do Estado solicitou prazo para manifestação, sendo concedido pelo juiz, o prazo de dez dias úteis, tanto para MPE quanto para o MPU, contando a partir do dia 20 de abril. Por esta contagem o prazo terminou no dia 5 de maio, quando o juiz poderia decidir atendendo ao pedido do prefeito, para a desocupação da escola ou atender o pedido da comunidade.

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