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Em que pé estão as investigações de três assassinatos de crianças e adolescentes em Pernambuco

Giovanna Carneiro / 08/07/2022
Duas mulheres segurando uma faixa preta com letras brancas onde está escrito Justiça por Jonatas - Roncadorzinho (Barreiros) - Basta de violência!. A mulher que segura a faixa em primeiro plano, à esquerda da imagem, tem pele escura, usa boné vermelho, camisa branca com estampa da foto do menino Jonatas. Do lado oposto há outra mulher segurando a faixa, mas ela está desfocada e olhando para o lado oposto ao da câmara. Por trás da faixa preta, mais acima, há outra faixa branca com letras pretas com a frase mataram o menino Jonatas, agora querem matar toda a comunidade realizando o leilão de nossas terras.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

No dia 13 de julho de 2022, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que tem por objetivo garantir a proteção integral de indivíduos menores de idade, completa 32 anos. Apesar da vigência da legislação, a violência contra crianças e adolescentes ainda é uma prática constante no país, como foram os casos das mortes em Pernambuco de Heloysa Gabrielle, Victor Kawan e Jonatas Oliveira.

Um relatório elaborado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e divulgado em 2021 identificou 34.918 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes na faixa etária de 0 a 19 anos no Brasil, ocorridas entre 2016 e 2020. O levantamento, intitulado Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, também verificou o crescimento de mortes em consequência de intervenções policiais, que, em 2020 representou mais de 15% das mortes violentas desse grupo.

De acordo com Juliana Accioly, advogada e coordenadora do projeto Teia de Proteção, do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), é preciso considerar os diferentes contextos sociais de crianças e adolescentes para mitigar as violências: “quando a gente pensar em infância, a gente precisa pensar primeiro em qual infância importa, qual criança importa, porque a gente tem uma criança branca e moradora do centro urbano que tem acesso a políticas públicas e também temos uma infância que quase sempre é invisibilizada e não é reconhecida como uma infância digna de proteção. Então, precisamos estar atentos aos recortes de raça, gênero e territorialidade que são fatores que agravam as violências”.

A pesquisa realizada pela Unicef concluiu ainda que meninos negros são as maiores vítimas de violência em todas as faixas etárias. São também os meninos negros entre 15 e 19 anos que mais morrem em decorrência de ações da polícia. ”A gente precisa desnaturalizar casos de racismo e para isso precisamos que a política racial seja tratada com prioridade pelas forças de segurança”, reforçou Juliana.

Entre os estados com o maior número de mortes violentas intencionais de vítimas entre 10 e 19 anos, notificados pelo panorama da Unicef, Pernambuco ficou em terceiro lugar, antecedido apenas pelos estados do Ceará (1º lugar) e Acre (2º lugar). O alto índice de violência no estado foi reiterado nos últimos meses, quando assassinatos de crianças e adolescentes comoveram e mobilizaram a população pernambucana. Muitos desses crimes ainda seguem em investigação e a Marco Zero Conteúdo reuniu informações sobre o andamento dos processos judiciais e inquéritos policiais instaurados para apurar os assassinatos de Heloysa Gabrielle, Victor Kawan e Jonatas Oliveira, vítimas de disparos de armas de fogo.

Relembre os casos:

  • Heloysa Gabrielle, de 6 anos

Na tarde do dia 30 de março de 2022, Heloysa Gabrielle, de apenas 6 anos, foi atingida por disparos de arma de fogo enquanto brincava em frente a casa de sua avó. O assassinato aconteceu em Porto de Galinhas, distrito de Ipojuca, na Região Metropolitana do Recife. Lolô, – como era conhecida pela vizinhança – , foi baleada durante uma ação do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) na comunidade de Salinas, que perseguia um suspeito que estava em uma moto.

Na época do crime, o diretor integrado especializado da Polícia Militar, coronel Alexandre Tavares afirmou que os policiais do BOPE dispararam para reagir a uma suposta ação do suspeito e que houve troca de tiros. Porém, vizinhos e parentes da criança, que testemunharam o crime, afirmam que os tiros que atingiram Heloysa foram disparados pela polícia, pois não teria ocorrido tiroteio algum. “Eles querem que a gente fale que foi troca de tiro, mas não foi troca de tiro. Eu estava no momento e vi o que foi a pior cena da minha vida”, declarou uma vizinha da avó de Heloysa e testemunha oficial do caso, em entrevista à Marco Zero em abril.

Após protestos realizados por moradores da comunidade de Salinas e familiares de Heloysa, no dia 6 de abril de 2022, o governador Paulo Câmara recebeu os pais e os tios da criança para conversar sobre o processo de investigação do assassinato. Na ocasião, Paulo Câmara afirmou que: “a investigação do caso será rigorosa e célere”. No entanto, mais de quatro meses depois, o inquérito policial ainda não foi concluído.

A reportagem procurou a Polícia Civil de Pernambuco para saber o andamento das investigações e a resposta enviada por e-mail foi a seguinte: “A Polícia Civil de Pernambuco informa que o caso caminha para a conclusão do inquérito”. De acordo Eliel Silva, advogado do caso, a reprodução simulada do crime ainda não foi devolvida ao delegado da Delegacia de Prazeres, responsável pela elaboração do inquérito policial.

  • Victor Kawan, de 17 anos

Foi na garupa da moto de seu amigo que Victor Kawan, de 17 anos, perdeu sua vida. A causa da morte: atingido por disparos de arma de fogo durante uma abordagem policial. O assassinato aconteceu na tarde do dia 11 de dezembro de 2021, no Sítio dos Pintos, em Dois Irmãos, zona oeste do Recife. Só em junho deste ano, seis meses após o crime, o inquérito foi concluído, mas ainda há contestações que a família deve levar a justiça.

Os depoimentos sobre o assassinato divergem. A Polícia Militar informou que houve troca de tiros e uma arma foi encontrada com o adolescente. No entanto, familiares de Victor e testemunhas do crime negam a versão apresentada pela polícia e afirmam que os policiais começaram a atirar em direção aos jovens quando Wendel Alves – amigo de Victor Kawan – , demorou a parar a moto pois não tinha habilitação e estava assustado com a abordagem da polícia. Além disso, os familiares declaram que a arma encontrada com Vitor Kawan não era dele e teria sido “plantada” pela própria PM.

O inquérito policial do assassinato foi concluído há duas semanas. O delegado responsável pela investigação entendeu que os policiais foram responsáveis pela morte de Victor Kawan e por isso devem ser julgados pelo crime de homicídio doloso, quando há intenção de matar. Porém, o inquérito não considerou a fraude processual – quando a polícia manipula o espaço do local do crime – defendida pela família da vítima. O inquérito policial foi realizado pela 5ª DHPP.

Agora, o advogado da família de Victor Kawan vai recorrer ao Ministério Público para denunciar a fraude processual que não foi considerada pelo delegado na conclusão do inquérito. A expectativa é que a denúncia feita ao MP vire um processo criminal e, assim, os policiais possam ir à júri popular.

“A família também pretende entrar com uma ação na Defensoria Pública solicitando reparação pela morte do jovem já que ele é vítima do Estado, que tem o dever constitucional de reparar a família, afinal, estamos falando de uma pessoa de 17 anos que tinha toda uma vida pela frente e que deixou de ser apreciada em razão da letalidade policial”, afirmou Eliel Silva, advogado popular e membro do projeto Oxé responsável pelo caso.

  • Jonatas Oliveira, de 9 anos

No dia 10 de fevereiro de 2022, Jonatas Oliveira, de 9 anos, foi assassinado a tiros dentro de sua casa por sete homens armados e encapuzados que invadiram sua casa. A criança estava escondida embaixo da cama com sua mãe quando foi atingida. O crime aconteceu no Engenho Roncadorzinho, em Barreiros, na Zona da Mata Sul de Pernambuco.

Jonatas era filho de Geovane da Silva, líder rural e presidente da associação dos agricultores de Roncadorzinho. Por viver em uma zona rural conhecida por sofrer com conflitos agrários, e ser filho de uma liderança que já havia sido ameaçada anteriormente, moradores do engenho e familiares da criança acreditam que a morte de Jonatas foi motivada pela disputa de terras na região.

No dia 17 de fevereiro, um dia após o crime, a Polícia Civil afirmou que a ação que resultou na morte da criança foi realizada a mando de traficantes, que estavam se vingando de Geovane após o agricultor se recusar a vender suas terras. A polícia declarou, ainda, que o mandante do crime já estava preso por outras ocorrências.

O inquérito policial foi concluído aproximadamente 60 dias após o assassinato da criança. Cinco suspeitos de participar do crime foram presos, mas a pessoa que a polícia identifica como principal executor da ação ainda está foragido.

“No nosso entendimento não existe apenas um mandante e sim interesses congêneres em uma região onde os moradores estão ameaçados de despejo. […] Por isso, nós achamos que a polícia deveria investigar quem é o mandante do mandante porque não há outra motivação para essa violência a não ser o conflito agrário”, afirmou o advogado da família de Jonatas e representante da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado de Pernambuco (Fetape), Lenivaldo Marques.

Ainda de acordo com o advogado, moradores do Engenho Roncadorzinho e a família de Jonatas Oliveira seguem em diálogo com órgãos da Justiça, entre eles o Ministério Público, a fim de garantir a segurança da região, que segue sendo alvo constante de ameaças e conflitos motivados pela disputa de terras.

O projeto Oxé e a importância de cobrar justiça

“A gente entende que as vítimas de racismo precisam de apoio no campo jurídico, mas as violências também fazem com que as pessoas necessitem de acompanhamento e cuidado com a saúde mental”, afirmou o advogado popular Eliel Silva ao se referir ao projeto Oxé.

Lançado em 2021, o Oxé é uma iniciativa do movimento negro para amparar vítimas de racismo e seus familiares. Criado pela Rede de Mulheres Negras de Pernambuco em parceria com o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) e a Articulação Negra de Pernambuco (Anepe), o projeto é formado por advogados, assistentes sociais e psicólogos negros, que prestam um atendimento jurídico e psicossocial.

Atualmente, o Oxé trabalha com 15 casos de violência e racismo que aconteceram em Pernambuco, entre eles, os assassinatos de Heloysa Gabrielle e Victor Kawan. Advogado atuante no Oxé, Eliel Silva fala sobre a relevância da iniciativa para as famílias das vítimas:

“As pessoas não têm letramento quando estão trabalhando com esse tipo de crime, muita gente não conhece as legislações sobre crimes de racismo no Brasil e por isso não entendem a jurisprudência desses casos. Muitas vezes os próprios profissionais servidores públicos não têm esse conhecimento e não conseguem nem diferenciar injúria racial de racismo”, completou o advogado.

Além da importância de ter pessoas negras atuando em casos de racismo, as ações de mobilização realizadas pelas famílias junto à Anepe, que tem por objetivo cobrar respostas do Governo do Estado e das forças de segurança pública no processo de investigação e punição dos autores das violências, é mais um êxito impulsionado pelo projeto Oxé.

“Eu vejo essas mobilizações como uma forma essencial de agilizar uma resposta que pode gerar um alívio para a família no primeiro momento, mas o mais importante é que a partir das manifestações populares a gente deixa de olhar esses casos com naturalidade e aceitar que eles se repitam constantemente”, disse Eliel Silva.

Advogado Eliel Silva, do Oxé, acompanha casos de racismo e violência contra pessoas negras. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.