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Colagem: thiko
Substantivo feminino, exaustão é o ato ou efeito de exaurir(-se); esgotamento. Durante a pandemia do coronavírus, quantas vezes você escutou uma mulher dizer que estava exausta?
O isolamento social em razão da pandemia do coronavírus mudou radicalmente a vida de famílias, mas a situação é ainda mais grave para as mulheres periféricas e negras, que já conviviam com sistemas e rotinas de superexploração, preocupações e incertezas com o futuro.
A exaustão das mulheres têm muitas razões: os cuidados intensificados, o medo pela saúde, a preocupação com filhos, o desemprego, a violência. O estado permanente de alerta que essas mulheres têm vivido nos últimos cinco meses agora toma outra proporção: a reabertura do comércio e atividades sociais traz ainda mais medo e sentimento de desamparo.
Na conta das preocupações estão o medo da exposição da própria mulher ao risco de contaminação pelo coronavírus, o medo de contaminar os filhos, mães e pais idosos, parentes que fazem parte do grupo de risco. Até nisso, a rede de apoio e suporte mais próxima das mulheres ficou fragilizada.
O efeito é em cadeia. As mulheres que estão voltando ao trabalho, muitas vezes, não têm com quem deixar os filhos. As avós ou parentes próximos deixaram de ser as primeiras opções, devido aos cuidados e prevenção ao coronavírus.
Sem perspectiva de retorno às aulas, crianças e adolescentes e mães tentam acompanhar atividades escolares e não perder o ano letivo, mas não é fácil. Muitas das famílias acessam internet apenas pelo celular, com péssima qualidade de conexão.
Durante a pandemia, 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém, segundo a pesquisa Sem parar o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. Observado pela questão de raça, esse dado aponta que, entre as negras, 52% passaram a cuidar de alguém, 46% das brancas e 50% de indígenas ou amarelas. A pesquisa realizada pela Gênero e Número e a Sempreviva Organização Feminista (SOF) com objetivo de entender as dimensões do trabalho e da vida das mulheres no contexto da pandemia.
O estudo ouviu 2.641 mulheres entre 27/04/2020 e 11/05/2020 e traz outras revelações importantes para compreender como desigualdades econômicas, sociais e a questão racial impacta diretamente no como as mulheres estão atravessando a crise do coronavírus.
Segundo a pesquisa, 58% das mulheres desempregadas são negras (brancas são 39%, indígenas e amarelas são 2,5%). Outro dado importante é que 40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram o sustento da casa em risco – 55% que responderam assim são negras. O medo das mulheres negras, portanto,não é uma projeção, mas um fato justificado pela insegurança e desproteção.
São essas mesmas mulheres que dizem ver mais perigo ainda o modo como a reabertura está acontecendo. Se o auxílio emergencial, de responsabilidade do Governo Federal, ajudou a segurar as pontas, a ausência de políticas locais deixa descoberta diversos aspectos da realidade das mulheres negras e periféricas.
A falta de políticas públicas e ações pensadas para amparar populações mais vulneráveis, em especial as mulheres, fica evidente quando planos de abertura não abordam as necessidades desse grupo. Com quem deixar os filhos quando voltar a trabalhar? Qual é perspectiva de retorno de creches e escolas? Como garantir a proteção com o transporte público superlotado, mesmo na pandemia? Todas essas perguntas são feitas por mulheres que vão voltar a trabalhar ou não pararam durante a pandemia.
“Quando você olha o plano de reabertura do governo do estado, não tem nada relacionado às mulheres. É como a condição fosse igual a dos homens. Não tem política específica, mesmo o Governo do Estado tendo uma secretaria das mulheres, isso chama atenção. Não tem nada pensado”, critica Rosemere Nery, educadora da FASE e integrante do Fórum de Mulheres de Pernambuco.
Entendendo que a crise do coronavírus iria impactar negativamente ainda mais as mulheres, o Fórum de Mulheres de Pernambuco criou um grupo chamado Rede de Solidariedade para tentar ajuda, uma vez que o Estado não tem dado conta de apoiar as mulheres.
“A gente tem feito incidência e ações de solidariedade com distribuição de cestas e de remédios, ajudando as mulheres a continuarem participando da luta. Um grande número das mulheres ficaram sem trabalho porque ou foram demitidas por conta da pandemia ou já trabalhavam na informalidade. Essas mulheres não conseguiram mais se manter. Para nós instalar a Rede de Solidariedade foi muito importante para, além de apoiar com as doações, poder estar em contato com essas mulheres”, explica Nery.
Cinthya Renata trabalha com serviços gerais em uma empresa. Antes da pandemia, seu trabalho de carteira assinada, de segunda à sexta, das 7h às 17h, dava conta de sustentar a casa e os dois filhos junto marido, que trabalha como entregador de aplicativo. Com a pandemia, ela teve o salário reduzido em 50%.
Depois de quatro meses, ela vai voltar a trabalhar normalmente a partir de 3 de agosto. Durante a pandemia, ela não parou totalmente, ficou trabalhando uma vez por semana. Nesse esquema, seu marido consegue levá-la de moto, o que ameniza o medo por contaminação. Mas quando voltar ao normal, ela não sabe o que vai acontecer.
“Eu acho que ainda está muito cedo para voltar a trabalhar normal. Deveria chegar até o final do ano como estava, indo limpar uma vez por semana para não ficar muito exposto. Lá não é um local que tem muita gente. Querendo ou não, no transporte tem muita aglomeração e os médicos dizem que a covid-19 pode voltar”, diz.
Apesar de não ter feito o teste, Cinthya acredita que já contraiu o coronavírus. Mas nem isso a tranquiliza, já que não têm há certeza sobre possibilidade de nova contaminação.
Com o retorno ao trabalho, ela não sabe como vai conciliar o acompanhamento dos filhos nas atividades escolares, que já não estão sendo fáceis. “Estão passando atividade pelo telefone. Mas não funciona, é muito complicado. Às vezes chego muito cansada, fico sem paciência”, desabafa. Sua filha, de 13 anos, até consegue fazer os exercício sozinha, mas o menino de nove precisa de atenção.
Além disso, a segurança das crianças é outra preocupação. “Eles não têm costume de ficar em casa sozinhos, porque antes eles ficavam na casa da minha mãe. Eu tenho que deixar eles sozinhos para ir trabalhar. Deixo eles trancados em casa, digo para não falar com ninguém”, diz. Ela e a família se mudaram para um conjunto residencial que ganharam pelo Minha Casa, Minha Vida e ainda não conhecem bem o local.
De acordo com a pesquisa da Gênero e Número e da SOF, 41% das mulheres que seguiram trabalhando durante a pandemia com manutenção de salários afirmaram trabalhar mais na quarentena.
Isis Carina é uma dessas mulheres. Negra, moradora de Peixinhos, bairro da periferia de Olinda, mãe solo de duas crianças e trabalhadora, ela não parou nem um só dia durante a pandemia. Nem mesmo quando teve uma crise de pânico. Auxiliar de farmácia em uma Unidade Básica de Saúde da Família, um trabalho essencial e no campo da saúde, ela não parou.
Todo dia, ela se desdobra em uma rotina de cuidados com a saúde, limpeza, trabalho e atenção aos filhos, uma de 12 menina, e um menino de dez anos, que é uma criança imperativa. Vinte e quatro horas em um dia são poucos para a rotina. Às vezes, ela conta com ajuda da sua irmã e mãe, que é hipertensa e diabética, mas ainda assim os últimos meses têm sido exaustivos.
Na palavras de Isis, o sentimento para descrever sua rotina é de horror. “Não está sendo fácil, está sendo muito cansativo, triplicou a jornada de trabalho. Eu não adoeci, mas eu entrei em pânico. Fiquei em depressão por duas semanas, sem querer sair de casa, mesmo com autocuidado”, diz. Os filhos têm acompanhamento psicológico, graças ao apoio de organizações de mulheres. Ela conta com o suporte da rede solidária do Fórum de Mulheres de Pernambuco e do Coletivo de Mães Feminista Ranusia Alves que têm ajudado com cestas básicas e material de limpeza.
Apesar da sobrecarga, ela não tem outra opção. Separada há oito anos, é ela sozinha quem sustenta os filhos. “O emprego que eu tenho é só esse, recebo um salário mínimo para cuidar dos meus filhos. Ainda sou estudante e, para completar, tem as aulas online. Mas meus meninos não têm o uso da ferramenta”, conta.
Para Isis, a reabertura e o que tem sido falado de volta às aulas traz mais uma preocupação.
“Eu tenho muito medo da reabertura do comércio onde as pessoas estão voltando a trabalhar. As escolas a gente não sabe quando tem previsão. Eu como mãe tenho muito medo de deixar meus filhos voltarem à escola. A gente vê que esse sistema [da reabertura] não foi feito para mulheres. O isolamento piorou a situação das mulheres, a gente se sente esquecida”, desabafa.
No seu dia a dia, quando cruza o bairro em que vive para chegar ao trabalho, ela também vê a realidade que não têm nada a ver com a propaganda do governo. “Essa questão de prevenção nos ônibus é lenda. Diminuíram a frota, não tem mais cobrador. Fica mais demorado para pagar a passagem ao motorista, se forma a aglomeração. Em nenhum dos ônibus eu vi um card ou um folheto falando sobre cuidados”, ela descreve. Por sorte, ela às vezes consegue ir de bicicleta ao trabalho, o que reduz essa exposição. “Se para mim é difícil, imagina as mulheres que estão retomando agora”, diz.
Marta Cristina Souza, de 49 anos, tem cinco filhos adolescentes. Desde o início do isolamento social, ela, o marido e filhos estão todos dentro de casa. Diante de tudo, ela viu o cansaço multiplicar no isolamento. Os cuidados, em boa parte, são responsabilidade dela. “Está bem cansativo, tem dias que eu não aguento”, diz.
Diarista, ela viu todas as clientes fixas suspenderem o serviço durante a pandemia. Seu marido também não tem renda fixa e trabalha fazendo bicos. “Nesse tempo de pandemia eu já tava com poucas faxinas, somente com quatro. Aos poucos foram me excluindo. A maioria são idosas e não tava dando para ira. Elas tinham medo, outras os parentes ficaram dentro de casa”, conta.
A redução da renda foi amenizada pelo auxílio emergencial e pelo Bolsa Família, que garantem a manutenção do mínimo para a numerosa família. “É difícil passar o mês com esse dinheiro. Adolescente e criança não quer saber que está faltando, eles querem. A gente tem que conversar muito, controlar. Tem que fazer o dinheiro render o mês todo”, conta.
O principal medo de Marta é com o futuro dos filhos. Com as aulas suspensas e sem perspectiva de retorno, ela teme pela preparação dos mais velhos para o Enem, além do desestímulo com o estudo em geral.
“Nesse tempo e pandemia estão tentando estudar pela internet, pela rede social, mas passei um tempo sem ter como pagar internet. Eles já estão estressados, tem dias que já não querem mais estudar, fazer as tarefas. Isso me estressa, me deixa hiper nervosa, agitada, pensando como vai ser o final de ano deles, o ano nos estudos. Minha filha as vezes diz que precisa imprimir alguma coisa e as vezes eu não tenho um trocado. É cansativo, estressante”, desabafa.
Marta tenta acalmar os filhos e apoiar nas atividades, mas teme também pela própria saúde. A preocupação não a abandona por um minuto. “Eu fico olhando para eles e penso que, se eu sair, eles caem. Por isso eu tenho que me pôr de pé, tenho que estar com saúde. A minha preocupação é em relação a todos, mas está sendo uma fase muito cansativa. Prefiro a rotina de trabalho do que a rotina de dentro de casa”, diz.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.