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Falta de rigor do governo Bolsonaro prejudica fiscalização do trabalho escravo no Brasil

Mariama Correia / 06/02/2020

Criança encontrada trabalhando em casa de farinha em Ipubi, Sertão de Pernambuco. Responsáveis não foram punidos. Crédito: MPT-PE

Divergências entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a
secretaria de Trabalho, ligada ao Ministério da Economia, estão
comprometendo atividades e o acompanhamento das ações de combate ao
trabalho escravo no Brasil. Desde o início do ano passado – com a
posse de Jair Bolsonaro (PSL), que extinguiu o Ministério do
Trabalho e distribuiu suas competências entre outros órgãos -, a
União parou de repassar dados ao MPT.

“Informações detalhadas sobre resgates de trabalhadores são coletadas, centralizadas e repassadas pela secretaria do Trabalho ao MPT. Desde o início do ano passado temos encontrado certa resistência na obtenção desses dados”, admitiu o procurador do trabalho do MPT, Ulisses Carvalho.

As planilhas e as entradas no seguro-desemprego, que eram enviadas
pela União, alimentavam o site “Observatório Digital do Trabalho
Escravo”, uma iniciativa do MPT junto com a Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Por isso, a ferramenta só está
atualizada até 2018. O site traz informações detalhadas, como cor
da pele, idade e perfil etário dos trabalhadores resgatados,
particularidades que não são mostradas pelo portal da Inspeção do
Trabalho, do Governo Federal, onde é possível obter apenas
informações gerais sobre as fiscalizações.

De acordo com o portal federal, no ano passado, 1.054 trabalhadores em situação análoga à de escravo foram resgatados. O número é, inclusive, menor do que o ano anterior, quando aconteceram 1.745 resgates.

Flexibilização da lei

Para proteger os ruralistas, Bolsonaro chegou a defender
flexibilizações na legislação sobre trabalho análogo à
escravidão, no ano passado. No Brasil, reduzir
alguém a esse tipo de condição é crime previsto no artigo 149 do
Código Penal, com pena de reclusão de dois a oito anos e multa.

Uma das primeiras ações de Bolsonaro como presidente foi extinguir
o Ministério do Trabalho. Com isso, o orçamento das atividades de
fiscalização foi reduzido, diminuindo equipes e prejudicando as
ações. Atualmente as atividades estão a cargo do Ministério da
Economia, comandado pelo ministro Paulo Guedes, que notoriamente tem
mais afinidade com as questões do empresariado do que com as dos
trabalhadores.

A forma como Bolsonaro e Guedes tratam a temática do combate ao
trabalho escravo parece já ter sido assimilada na conduta dos
fiscais da secretaria do Trabalho. Isso vem gerando consequências
graves. Em maio do ano passado, a discordância entre fiscais do MPT
e da União, que trabalham juntos durante as fiscalizações,
prejudicou 114 pessoas encontradas em situações degradantes em
casas de farinha no distrito de Serrolândia, município de Ipubi,
Sertão de Pernambuco. A equipe do Governo Federal não entendeu que
a situação configurava trabalho análogo à escravidão e, por
isso, os trabalhadores não foram resgatados.

O MPT moveu uma ação civil pública que colocou a União como ré, ao lado das empresas exploradoras, para cobrar o resgate emergencial dos trabalhadores. “As pessoas ganhavam R$ 3,00 a cada tonel de macaxeira raspado. Estavam mexendo com máquinas sem equipamentos de proteção. Havia crianças trabalhando”, lembra o procurador do trabalho do MPT, Ulisses Carvalho. Ele descreve o cenário encontrado na ocasião como “estarrecedor”. “Não havia qualquer respeito aos direitos fundamentais, às regras de saúde e segurança do trabalho”, afirma.

A União fechou as casas de farinha, porém, como não houve resgate imediato, as vítimas ficaram sem pagamento de indenizações e/ou seguro-desemprego, que são assegurados por lei nesses casos. Apenas as famílias das crianças foram indenizadas a partir de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) expedido pelo MPT de Pernambuco (MPT-PE).

Até agora, quase um ano após da ação civil pública ter sido
aberta, o julgamento não foi concluído. O pior é que, tanto tempo
depois, ninguém sabe onde os trabalhadores estão. Isso porque, sem
o resgate, apenas dados de algumas vítimas foram coletados. Uma
liminar que determinava que a União realizasse a identificação dos
trabalhadores foi derrubada pelo Tribunal Regional da 6º região.
Como a liminar foi cassada, as vítimas não receberam auxílios
financeiros e, uma vez que as casas de farinha foram fechadas,
ficaram sem qualquer fonte de renda.

Sem acompanhamento adequado, auxílio financeiro e orientação
profissional até a inserção no mercado formal, essas pessoas estão
mais vulneráveis a voltarem para atividades degradantes. A ação
movida pelo MPT-PE cobra o encaminhamento das vítimas ao sistema de
qualificação profissional e recolocação no mercado de trabalho.
Também que as fábricas paguem dano moral coletivo de R$ 1,2 milhão,
o que corresponde a R$ 10 mil por trabalhador adulto e R$ 20 mil por
cada menor de 13 anos.

Recentemente, a União pediu que testemunhas de outros estados sejam
ouvidas no caso, o que atrasou os trâmites. A expectativa do MPT-PE
é que a sentença seja proferida ainda neste primeiro semestre. A
Marco Zero Conteúdo procurou a secretaria do Trabalho, ligada
ao Ministério da Economia, mas não obteve respostas até a
publicação desta reportagem.

AUTOR
Foto Mariama Correia
Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).