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Fraternidade, esperança e miséria moram juntas embaixo da ponte do Limoeiro

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Carlos não tem nada, nem endereço. Não há licença poética ou exagero nessa afirmação: há quase 30 anos ele mora debaixo das pontes do centro do Recife e sua lista de bens se resume a um colchão fico, uma manta, lençóis surrados, algumas bermudas, camisas velhas, chinelo de dedo, um ventilador de três velocidades, uma cuscuzeira, uma traquitana com resistência elétrica para cozinhar e uma tv de tubo que queimou na véspera da entrevista. A rede e o barco que lhe garantem a sobrevivência são emprestados.

Aos 62 anos, o pescador Carlos Antônio Bezerra dos Santos não alimenta desejos de consumo ou de possuir algum patrimônio. E aqui está o que justifica a publicação deste perfil na véspera do Natal: ele não pára de sonhar com uma vida mais confortável, mas seus sonhos não são individuais. Tudo que ele pensa em vir a ter é para melhorar a vida dos quase 50 pescadores que convivem sob a ponte do Limoeiro, onde começa a avenida Norte.

Apesar de muitos pescadores deixarem seus barcos junto à ponte e guardarem redes e motores, Carlos é o único que realmente mora ali, numa espécie de palafita de madeira cujo teto é a ponte. Ele está ali há quatro anos, mas antes passou mais de duas décadas num barco sob outra ponte, a Maurício de Nassau, aquela que liga os bairros do Recife e Santo Antônio.

“Eu era segurança de posto de gasolina, mas sempre gostei mesmo foi de pescar. Pedi demissão, me separei e fui pra debaixo da ponte”. É assim que Carlos resume sua vida.

“Não é questão de preferência, não, é necessidade, mas pra mim, como eu vivo de pescaria, melhor ficar perto do rio, perto do mar, melhor do que uma favela longe de onde eu tiro o sustento”, adverte. Em 2017, ele esteve perto de ganhar um endereço, com direito a CEP e número na porta. Ou, pelo menos, achou que estava perto disso.

Foi depois que Caco Barcellos e estudantes de Jornalismo do programa Profissão Repórter o entrevistaram. “Depois que saiu a entrevista comigo na Globo, no outro dia o pessoal da prefeitura chegou lá me perguntando se eu queria sair dali, que eu não era obrigado sair, mas se quisesse eles me botavam pra receber aluguel social, me davam fogão, mesa, geladeira. E tudo que me ofereceram, me deram. E me botaram no aluguel social também, só que é o seguinte, onde tem aluguel social tem muita gente que é dependente químico. E eu não quero mais estragar a vida na cachaça, aí tive que sair da favela do Papelão e deixei de ganhar R$ 200 por mês”, conta.

Depois da entrevista, os filhos o procuraram para dizer que “não era nem pra ter feito porque a família ficou com vergonha porque eu disse que morava embaixo da ponte, mas eu moro, então não tô mentindo”. No entanto, o que fez a família se afastar dele foi o alcoolismo. “Quando bebia era muito violento. Quando fiquei sozinho, pronto, aí eu bebia direto mesmo. Então decidi parar de beber, mas ainda voltei a beber, parei novamente e voltei a beber de novo. Agora fazem nove meses, tenho fé em Deus que eu não bebo mais, não, que é pra ver se consigo alguma coisa, porque já tô no fim da velhice”.

Carlos tenta se manter longe da bebida para manter os sonhos. (Crédito: Arnaldo Sete/MZ conteúdo)

Sonhos de consumo

E o que esse homem tão desapegado do dinheiro tanto quer?

“Se conseguisse um freezer velho, usado, botava ali [aponta para uma plataforma erguida sobre colunas de madeira ao lado do local onde dorme e cozinha], pra o pessoal daqui guardar os peixes, porque sem freezer, os pescadores têm que vender o pescado no mesmo dia e por qualquer preço”, explica. A lista de desejos de Carlos é modesta e todos os poucos itens estão associados à pesca.

O segundo maior desejo do pescador Carlos nasceu de uma ideia que lhe ocorreu quando viu uma balsa da prefeitura que recolhe lixo no rio Capibaribe. “Uma vez eu falei com o secretário do Meio Ambiente, nem sei o nome dele, mas eu falei com pra ele botar os pescadores para recolher o lixo e dar um troco que desse pra gente comprar, pelo menos, a gasolina. Rapaz, a gente ia tirar bem mais lixo do que essa barca que eles pagam. Tem dia que só os pescadores aqui da ponte do Limoeiro já trouxeram mais de 300 quilos na rede. Tem dia que a gente não pega nenhum peixe, mas pega muita porcaria”.

O pescador acredita que, se sua ideia fosse aceita, ele e seus colegas teriam como sobreviver durante os meses do ano em que não se pega nada do rio.

Os bichos do rio e do mangue

O estuário do Capibaribe, aliás, é tanto um aliado quanto uma ameaça. “Tem noite que só tenho cuscuz e mais nada, aí jogo uma redinha e pesco umas saúnas [nome popular de um peixe miúdo]. Só isso e já tenho a mistura da janta”. Ao menos duas vezes por ano, o rio dá medo. As marés são tão altas que a linha d’água fica a um palmo de sua cama.

O lugar onde ele passa as noites sozinho está longe de ser agradável, porém o modo como ele lida com um espaço tão insalubre dá a sensação do seu cotidiano ser mais leve do que parece. “Tem muriçoca demais, mas tenho um ventilador pra espantar”. Sim, um lugar escuro úmido tem ratos e baratas, mas ele garante: “nunca me fizeram mal”.

Sob sua estranha palafita, que mais parece um tosco mezanino, proliferam centenas de aratus, um tipo de caranguejo de patas vermelhas, com elevado comercial, cujo carne é vendida por até R$ 55,00 a cada quilo (para efeitos de comparação, o quilo da tainha, o peixe mais comum na área sai por R$ 15) Nos aratus, porém, ninguém mexe. “Não deixo ninguém matar os bichinhos, são meus amigos, eu crio como se fosse meus cachorrinhos. Dou comida pra eles até ficarem com as patas bem vermelhas. Por quê? Porque eles são lindos, são a beleza desse lugar aqui”.

Esta reportagem foi produzida com apoio do Report for the World, uma iniciativa do The GroundTruth Project.

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AUTORES
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.