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Indígenas ocupam terreno em Igarassu e defendem criação de reserva urbana

Giovanna Carneiro / 11/01/2023
Homens e mulheres indígenas posam para fotografia em ambiente de mata junto à faixa com nome da ocupação.

crédito: Arnaldo Sete/MZ

“Um processo de etnogênese e resgate ancestral e cultural”, é assim que a cacica Valquíria Kialonan, do povo Karaxuwanassu, caracteriza a ação de ocupação realizada por indígenas pernambucanos no município de Igarassu. No primeiro dia de 2023, os Karaxuwanassu, povo pluriétnico que reúne diversas etnias indígenas como Xukuru, Karapotó, Fulni-ô e Warao, chegaram até o Polo Empresarial Ginetta, terreno localizado na Estrada do Monjope com extensão de aproximadamente 120 hectares, e montaram um acampamento para reivindicar a criação de uma reserva indígena no local.

De acordo com os indígenas que participam da ocupação, a área reivindicada é uma terra sagrada do povo indígena Caeté e, por isso, deve ser resgatada e devolvida aos povos originários. “Os encantados, que são nossos guias espirituais, nos guiaram até esse território e, por isso, nós o ocupamos porque ele é nosso por direito. Nesse lugar viveram indígenas que travaram diversas batalhas, principalmente com os portugueses colonizadores, portanto este é um processo de reparação histórica”, afirmou a Cacica Valquíria Kialonan.

A ocupação conta com cerca de 150 pessoas e a previsão é que passe dos 200 ocupantes. Os integrantes da ocupação, em sua maioria, são indígenas que vivem em contexto urbano de diversas áreas da Região Metropolitana do Recife, e que estão em situação de vulnerabilidade social.

A ocupação não é resultado da luta solitária dos indígenas. Autoridades da Arquidiocese de Olinda e Recife têm visitado o local constantemente levando mantimentos. O mais presente é o bispo auxiliar Limacedo Antônio da Silva, que celebrou um ato ecumênico no dia de Reis, 6 de janeiro, em companhia do babalorixá Ivo de Xambá.

Adriana Kayani e Ziel Kayrã, integrantes da ocupação. Crédito: Arnaldo Sete/ MZ Conteúdo

“Ser indígena em contexto urbano não é fácil, nós enfrentamos muito preconceito, porque as pessoas não acreditam e deslegitimam a nossa identidade. Além disso, nós passamos por muitas dificuldades financeiras. Vivemos uma situação precária durante a pandemia da covid e também fomos vítimas da última enchente que houve em Pernambuco porque muitos de nós moramos em áreas de morro. Tudo isso aumentou ainda mais a necessidade de estarmos em um lugar em que não precisamos pagar aluguel porque nós precisamos sobreviver com dignidade”, afirmou a indígena Adriana Kayani.

Atualmente, o terreno do Polo Empresarial Ginetta, pertencente à organização católica Focolare, está em processo de liquidação e desapropriação pela Prefeitura de Igarassu. A área conta com galpões e casarões antigos que estavam abandonados e com as estruturas gastas por falta de manutenção. De acordo com os indígenas, só após a ocupação, a gestão municipal iniciou as atividades de limpeza no terreno. Durante a nossa visita ao local, registramos a presença de funcionários da prefeitura capinando.

Reserva indígena

A proposta dos Karaxuwanassu é transformar o terreno abandonado em uma aldeia que receberá o nome Marataro Kaete, a primeira reserva indígena em um contexto urbano do Nordeste. Para isso, os indígenas estão buscando diálogo com a prefeitura e acionaram o apoio de órgãos que atuam em defesa dos direitos dos povos originários, entre eles, o Ministério dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

“Hoje nós estamos aqui em um processo entendido como ocupação ou retomada, mas isso é também um direito. A partir do momento em que um povo originário não tem direito a uma terra, isso fere os direitos humanos, por isso, hoje a gente está em diálogo com os poderes para promover um diálogo e para resguardamos juridicamente nessas instituições”, afirmou Ziel Kayrã, presidente da Associação Indígena em Contexto Urbano Karaxuwanassu (Assicuka).

“A gente quer dialogar com a prefeita, porque nós não queremos destruir as terras, pelo contrário, a gente está lutando pelo resgate, cuidado e reintegração com a mãe terra. Nós queremos saber da prefeita se ela quer ser vista como uma administradora que vai apoiar a criação da primeira reserva indígena em uma região metropolitana de Pernambuco ou se ela vai compactuar com uma história de violência e negação de direitos aos povos originários”, completou Kayrã.

Entramos em contato com a Prefeitura de Igarassu para saber o posicionamento da gestão municipal sobre a ocupação e também questionamos se a prefeita Elcione Ramos (PTB) teria a pretensão de realizar uma reunião com os indígenas. A assessoria de comunicação da prefeitura nos respondeu através de uma nota afirmando que o terreno em questão “não se trata de terra improdutiva” e que a área está “destinada para a construção de uma escola em tempo integral, para a educação de adolescentes”.

Leia a nota na íntegra:

Para os Karaxuwanassu, a construção da escola não impede a instituição da reserva indígena, tendo em vista que o terreno é extenso. “O quão potente seria ter uma reserva com uma escola que estivesse totalmente atrelada à cultura local dos povos indígenas?”, defendeu Ziel Kayrã.

A prefeitura afirmou ainda que já possui a liminar de reintegração de posse e que “está tratando o assunto com sensibilidade e responsabilidade, buscando que a desocupação seja voluntária, evitando-se os atritos que as reintegrações de posse costumam envolver”. Os indígenas Karaxuwanassu recebem visitas constantes de assistentes sociais na ocupação.

Na segunda-feira, 9 de janeiro, a Justiça de Pernambuco expediu mandado de reintegração de posse contra os Karaxuwanassu para que se cumpra a decisão favorável à prefeitura. No entanto, ainda há possibilidade de reverter a situação, pois, de acordo com o CIMI, houve acordo para que o poder público de Igarassu não dê andamento ao despejo até que uma reunião seja realizada com a Funai, com o Ministério dos Povos Indígenas e com o governo de Pernambuco.

Apesar da liminar de reintegração de posse, os indígenas mantêm a ocupação e iniciaram uma campanha de doações para garantir o conforto e a segurança alimentar de crianças, adultos e idosos que integram a ação.

Entre os itens solicitados pelos ocupantes, estão: materiais de limpeza e higiene pessoal, água, leite, carnes, colchões, roupas, lençóis e alimentos não perecíveis em geral. No Instagram do Coletivo Mariú Solidário e da Aldeia Marataro Kaete é possível encontrar as informações sobre os pontos de arrecadação. Também é possível fazer doações através do pix da ocupação, que está disponível nas redes sociais.

Imagem aérea do terreno do Polo Empresarial Ginetta, em Igarassu. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Resgate Histórico

Segundo os registros históricos, os Caetés habitaram o território onde hoje está situado o município de Igarassu, na Região Metropolitana do Recife, no século XVI, e foram responsáveis por protagonizar diversos confrontos contra os portugueses. Antes da chegada dos colonizadores ao litoral pernambucano, os Caetés viviam da pesca e da caça possuíam ótimas habilidades na construção de canoas e embarcações, o nome Igarassu, inclusive, deriva de “Iguarassú”, nome de origem do território, que significa “canoa grande”.

“Esse espaço era do povo indígena Caetés, que foi se apagando com o tempo e por isso não temos muitos registros desse povo aqui no Nordeste. Por isso estamos aqui não só pelo nosso povo, mas também pela própria comunidade de Igarassu, para que possam aprender mais com o nosso povo sobre a nossa história”, declarou o Pajé Juruna Opkreka, do povo Karaxuwanassu.

O Pajé relembrou o fato histórico que resultou na escravização e extermínio dos Caetés e questionou a veracidade dos fatos. “Há um evento conhecido pelo nosso povo que foi o cerco dos Caetés contra os portugueses. Existem registros na história que dizem que os Caetés eram canibais e mataram o bispo Sardinha e sua tripulação, o que é uma grande mentira porque os Caetés tinham um código de honra que os impedia de comer covardes”, disse Juruna Opkreka.

Em 1556, os indígenas da região foram acusados de assassinar e consumir os corpos dos náufragos de uma embarcação portuguesa. Entre os passageiros da embarcação estaria o primeiro bispo do Brasil, dom Pero Fernandes Sardinha. Após o ocorrido, a Igreja Católica se revoltou com os indígenas e os classificou como “inimigos da civilização”, com isso, os Caetés foram perseguidos e escravizados pelo governador português Mem de Sá. De acordo com os registros históricos, em apenas cinco anos todo o povo Caetés foi exterminado. Atualmente, pesquisadores duvidam se os indígenas realmente praticaram canibalismo contra o bispo Sardinha ou se os relatos foram fraudados para condenar os Caetés e exterminá-los.

A participação ativa da Arquidiocese junto aos indígenas soa como reparação histórica de um episódio sangrento da formação do Brasil.

Na imagem, da esquerda p/ direita: Iraci Mali; Ziel Kayrã; Cacica Valquíria Kyalonan; Pajé Juruna Opkreka. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.