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Indígenas têm suas próprias estratégias para combater coronavírus

Raíssa Ebrahim / 16/06/2020
barreira sanitária pankararu

Barreira sanitária na aldeia Baixa do Lero, Entre Serras Pankararu, em Pernambuco

O aumento dos casos do novo coronavírus no interior é mais uma preocupação para os povos indígenas de Pernambuco. Todas as terras indígenas do estado ficam entre o Agreste e o Sertão, caminho ou destino da BR-232, por onde o vírus se alastrou para as aldeias. Já são 131 casos confirmados e dez óbitos entre nove povos, segundo o oitavo e mais recente boletim da Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (Remdipe).

As terras indígenas mais atingidas, Fulni-ô, Xukuru e Pankararu, ficam justamente na borda de importantes rodovias que cortam o estado e estão próximas a centros urbanos. O aldeamento-sede dos fulni-ô, que concentra a maior quantidade de casos (72%), fica praticamente dentro da área urbana do município de Águas Belas. Juntos, esses três povos somam 90% dos casos indígenas da Covid-19 em Pernambuco.

O novo coronavírus evidenciou ainda mais o problema histórico dos vazios assistenciais no interior do Brasil, deixando os povos tradicionais ainda mais vulneráveis, já que a situação em parte do interior ainda está fora de controle.

Tanto é que 85 municípios do Agreste e das Matas Sul e Norte não vão avançar, nesta segunda-feira (15), para a terceira etapa do Plano de Convivência com a Covid-19. As cidades das regiões de Saúde Palmares (III Geres), Goiana (XII Geres), Caruaru (IV Geres) e Garanhuns (V Geres) não mostraram tendência de queda no número de novos casos e apresentaram um aumento na demanda por leitos de UTI.

Diante da negligência, das mentiras sustentadas pelo Governo Federal e do enfraquecimento das políticas públicas indigenistas, os indígenas precisam construir e fortalecer suas próprias estratégias de resistência e combate à pandemia, assim como em outros tantos momentos da história dos povos tradicionais, que têm em suas memórias o enfrentamento de doenças levadas pelos brancos.

As medidas adotadas envolvem barreiras sanitárias, decretação de lockdown, redistribuição de testes entre polos-base de saúde indígena, montagem de locais de acolhimento para isolar e assistir pessoas contaminadas, além da medicina tradicional indígena com seus remédios do mato em associação aos medicamentos prescritos por médicos.

Também estão sendo desenvolvidas campanhas próprias de comunicação, educação em saúde e ajuda para conseguir alimentos, materiais de higienização e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).

O governo federal se nega a contabilizar nos boletins os casos e mortes de indígenas que vivem em terras não homologadas e em ambientes urbanos. Por isso povos de todo o país têm levantado seus próprios dados e realizado suas próprias estatísticas.

Enquanto o Ministério da Saúde contabiliza 3.013 casos confirmados do novo coronavírus entres indígenas e 101 óbitos (atualização de 15/6/20), o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, formado pela articulação dos próprios povos, já soma 5.361 infectados e 281 óbitos. São 103 povos atingidos, incluindo os warao, refugiados da Venezuela em Pernambuco (atualização de 13/6/2020).

A Fundação Nacional do Índio (Funai) quer impedir os povos de fazerem barreiras sanitárias que bloqueiam estradas para não “comprometer a circulação de pessoas e o abastecimento nessas regiões”, criminalizando ações que salvam vidas. A simples suspensão das autorizações de entradas em terras indígenas, anunciada em março pelo órgão, não impediu o aumento da invasão e das ameaças por parte de madeireiros, fazendeiros, caçadores e grileiros.

Em Pernambuco especificamente, é preciso também seguir atento ao movimento pró instalação de uma usina nuclear no município de Itacuruba, no sertão, que abriga comunidades quilombolas e indígenas (pankará e tuxá campos e pajeú).

As barreiras dos Fulni-ô

Graças a estratégias de controle epidemiológico, os fulni-ô acreditam estar conseguindo superar a fase mais crítica da contaminação, que atingiu até agora 94 pessoas e levou quatro delas à morte, de acordo com a Remdipe. Os fulni-ô foram o primeiro povo a sentir o impacto da pandemia em seu território e tiveram pelo menos 15 profissionais de saúde indígena atingidos.

Em menos de um mês, a velocidade do contágio no território foi enorme. Tanto por conta da proximidade com a área urbana de Águas Belas quanto pela natureza dos hábitos e da cultura das comunidades indígenas, que envolvem rituais e compartilhamento de espaços.

“Teve semana em que, numa mesma casa, três ou quatro pessoas apresentaram sintomas ao mesmo tempo”, relata Wilke Torres de Melo, fulni-ô, antropólogo de formação e integrante da coordenação da saúde indígena de seu povo.

O primeiro caso foi descoberto a partir de um óbito que aconteceu muito rapidamente. O primeiro caso confirmado pela Secretaria Estadual de Saúde na cidade é de 4 de maio. O indígena, porém, morreu no dia 23 de abril.

Quando a notícia se espalhou, levou junto o temor pelo ambiente hospitalar. Wilke conta que as equipes de saúde indígenas se organizaram para realizar os atendimentos e acompanhamentos nos domicílios, mesmo cientes dos riscos. A essas estratégias de busca ativa, inicialmente junto aos grupos de maior risco e depois ampliada para toda a populaão , somaram-se as práticas tradicionais de cura.

Wilke, que voltou a morar no território para compor a linha de frente contra a pandemia e chegou a testar positivo, já está recuperado e comemora que não houve mortes em casa. Ele afirma que a resposta imunológica da população vem sendo satisfatória na maioria dos casos. Os fulni-ô chegaram a registrar 160 notificações numa só semana e esse número caiu para oito na semana passada, calcula o antropólogo.

Wilke detalha que a desaceleração que vem sendo sentida ainda não aparece nas estatísticas dos boletins porque as equipes estão preferindo só realizar os testes 13 ou 14 dias depois do aparecimento dos sintomas. Isso porque, diante da insuficiência dos kits, os testes podem ter baixa precisão no início dos sintomas e aí fica difícil ter acesso a um segundo exame. A primeira testagem de Wilke, por exemplo, deu negativa.

Se dependesse apenas dos envios do Ministério da Saúde, através do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), o polo-base que atende os fulni-ô só teria recebido 60 testes, que chegaram muito tarde. Cada polo tem recebido levas contendo somente 20 unidades. Graças à articulação entre as coordenações de outros povos que cederam kits não utilizados, junto com repasse do município de Águas Belas, os fulni-ô conseguiram 150 testes. A etnia aguarda a chegada de pelo menos mais 200.

Os fulni-ô também precisaram montar duas fortes barreiras sanitárias nas principais entradas para desinfecção, educação em saúde e distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) entregues pelo Dsei e pelo município. A equipe de endemia dos distritos também realizou ações diretas de sanitização de áreas domiciliares internas e externas. A aldeia principal tem quase mil domicílios, fora os cerca de 200 na aldeia xixia-kla.

A mobilização Pankararu

No Território Indígena Pankararu, entre os municípios de Jatobá, Petrolândia e Tacaratu, no sertão pernambucano, os indígenas organizaram uma campanha para reconstruir um Posto de Saúde da Família (PSF), incendiado juntamente com uma escola indígena (únicos na comunidade), logo após o segundo turno das eleições de 2018, que elegeram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

A comunidade Bem Querer de Baixo, onde o fato aconteceu, em Jatobá, é um dos focos de maior conflito na região, após os pankararu conquistarem na justiça a retirada de posseiros das terras demarcadas. Desde o atentado, há cerca de um ano e meio, o posto deixou de funcionar. Os atendimentos precisam ser feitos nas aldeias vizinhas ou nos domicílios.

Um mutirão para retirar os escombros e limpar o posto já foi realizado. Agora, a aldeia aguarda pelo Dsei e pela prefeitura de Jatobá para conseguir equipar a unidade de saúde. O Dsei já enviou alguns suprimentos, mas não o bastante. A conclusão da reforma é muito importante também para isolar casos que possam vir a acontecer. Nem todas as famílias têm como isolar uma pessoa num cômodo dentro de casa.

As terras indígenas da nação Pankararu começaram a sentir o impacto da pandemia nas últimas duas semanas, quando os casos começaram a aumentar principalmente em Jatobá e Tacaratu. São sete casos confirmados nas duas TIs e mais três na cidade de Jatobá, segundo a Remdipe.

Welton Pankararu, que narra o vídeo acima, é enfermeiro e um dos 75 profissionais de saúde que atuam no território. Ele conta que uma das maiores preocupações atuais é porque Tacaratu está no nível de transmissão comunitária. Lideranças dos grupos jovens se mobilizaram para atuar nas barreiras sanitárias 24h, que também contam com rodízio de profissionais da saúde.

Felizmente os casos não vêm aumentando, mas os 20 testes recebidos até agora pelo povo pankararu nem de longe suprem a necessidade para se fazer uma política de testagem nas aldeias. São 6,3 mil indígenas cadastrados, que vivem em 14 aldeias, além das cerca de 80 famílias ainda não cadastradas vivendo em áreas de retomada. Uma leva de mais 20 testes está sendo aguardada.

Os Pankararu não receberam do poder público material de higiene e limpeza em grande quantidade para distribuição. O governo de Pernambuco e a Funai, no entanto, enviaram cestas básicas.

Barreira sanitária na aldeia Piankó, Entre Serras Pankararu

Na visão de Welton, a compreensão e o engajamento de todos é que têm feito a diferença na luta para barrar a transmissão da Covid-19: “Nós, população indígena, vivemos muito do contato físico, da oralidade, das tradições. E compreendemos que agora era o momento de se distanciar, mas não de deixar de lutar. Isso está sendo primordial. Esperamos que tanto o município quanto o estado tenham como nos acolher caso alguma piora aconteça, porque temos feito nosso papel de impedir a disseminação do vírus”.

“Assim que os primeiros casos começaram a aparecer na mídia, percebemos que indígenas que estavam fora passaram a retornar para a aldeia. Uma indígena se contaminou em Jatobá. E aí começamos um trabalho de educação em saúde muito forte, visitando casas, dando orientações de isolamento, de lavagem das mãos, de uso de máscaras”, relata o enfermeiro, que lembra também da infraestrutura de saneamento básico precária para a maioria das famílias.

A casa de acolhimento Xukuru

Com duas terras indígenas (ororubá e cimbres) às margens da BR-232, os Xukuru, em Pesqueira, no Agreste, somam 14 casos confirmados da Covid-19. Os sete primeiros indígenas da etnia foram contaminados de uma só vez no local onde trabalham, um abatedouro da cidade.

Na esperança de que não haja aumento dos casos, as ações da Associação Xukuru do Ororubá envolve decretação de lockdown, com controle do fluxo de pessoas feito por voluntários, ações de sanitização, distribuição de kits de higienização, cestas básicas e 10 mil máscaras.

Numa articulação com o Dsei, uma escola indígena ororubá foi adaptada para ser uma casa de acolhimento, com equipe de saúde multiprofissional. O isolamento e cuidado foram determinantes para a recuperação dos pacientes e para evitar mais transmissões no território.

LEIA TAMBÉM: “Os povos indígenas são alternativa para o fracasso que estamos vivendo”, diz Guilherme Xukuru

O problema dos dados

Vânia Fialho, antropóloga e professora das universidades de Pernambuco e Federal de Pernambuco (UPE e UFPE), avalia que o problema dos dados dos povos indígenas sobre a pandemia “é gritante”. Há aldeias descobertas da coleta de informações.

Com o objetivo de fazer um levantamento mais detalhado, realizar um diagnóstico situacional e ser também uma forma de escuta, a Remdipe elaborou e vem trabalhando para ampliar a distribuição de cinco tipos de questionários online nas aldeias. Eles são direcionados para lideranças, guardiões/guardiãs dos saberes tradicionais de cura, coordenadores/as de polos base, agentes indígenas de saúde e de saneamento, e população em geral.

O desafio dessa coleta de informações é grande, uma vez que o momento exige distanciamento e não se pode chegar aos territórios. Portanto, o levantamento é digital, o que dificulta a capilaridade, já que nem todos têm celular, acesso à internet e familiaridade com tecnologia, principalmente os mais velhos, que são os mais vulneráveis e os que detém os saberes indígenas tradicionais.

Apesar de ainda não ser possível montar um diagnóstico, os poucos mais de 150 questionários respondidos até agora, a maioria por jovens, universitários e homens, trazem informações bastante relevantes. Como lembra a própria Vânia, as populações são pequenas e historicamente vulneráveis, então uma informação que chegue já é importante.

Por exemplo, um em cada quatro indígenas que responderam disseram não contar com atendimento das equipes dos Dseis. As respostas também indicam que tem chegado álcool, máscaras e protetores faciais, mas parece estar havendo déficit de em outros tipos de equipamentos como avental e óculos de proteção.

Semelhante a questão da testagem, os relatos mostram que os EPIs chegam, mas em quantidade insuficiente para toda a equipe dos polo base. Há queixas de profissionais de saúde sobre a capacitação insuficiente para o uso dos materiais distribuídos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Além disso, cerca de 30 indígenas relataram que as famílias não tinham plantado nesse período por conta da elevação do preço dos insumos.

Sobre as estratégias indígenas de combate à pandemia, Vânia avalia que “os indígenas estão ensinando, mais uma vez, a gente a resistir”. Ela coloca como essencial a necessidade de ampliar e avaliar processos a partir do olhar dos próprios povos, uma vez que o olhar ainda é muito biomédico.

“Seria muito importante termos medidas que não implicassem a afetação e autonomia dos povos indígenas”, pontua a antropóloga.

Organizações rebatem Funai

Em conversa com a Marco Zero Conteúdo, Vânia aproveitou para contestar a postura defendida na semana passada na coletiva da Funai. A reportagem acompanhou o evento, uma apresentação em Power Point cheia de números e argumentos que, nem de longe, refletem a realidade.

Robson Santos da Silva, secretário especial de saúde indígena (crédito: reprodução TV Brasil)

Na coletiva, o secretário especial de saúde indígena, Robson Santos da Silva, defendeu que não dá para incluir indígenas que vivem em áreas urbanas ou em terras não homologadas por conta da comprovação da autodeclaração indígena.

Acontece que, como afirma a professora, os indígenas vivem organizados, então existe a facilidade de identificação e também de possibilidade de diálogo. Não são pessoas dispersas. A própria Remdipe tem falado e incluído nos boletins os casos dos xukuru, dos cariri-xocó e dos warao.

Confira abaixo na íntegra a nota de resposta à coletiva publicada pela Coordenação da Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), entidade que há 30 anos luta pela defesa dos direitos dos povos indígenas.

Importante destacar que a transmissão pela TV Brasil foi cortada logo após o início das perguntas dos jornalistas no final da coletiva. O aviso dado é que quem quisesse continuar acompanhando teria que seguir a transmissão online.

Assistimos ontem, dia 09/06/2020, uma coletiva de imprensa sobre a Covid-19 em comunidades e povos tradicionais na esperança de vermos o Governo Federal finalmente anunciar medidas concretas de enfrentamento ao coronavírus nas Terras Indígenas no Brasil.

O que vimos, porém, foi do início ao fim foi uma campanha de propaganda da atual administração nas palavras dos representantes do Ministério da Mulher e Direitos Humanos, da Fundação Nacional do índio (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Muitas palavras vazias e números decorados jogados à imprensa na expectativa de dizer a todos, no Brasil e no exterior, que a Funai e a Sesai estão engajadas pelas vidas indígenas e que estão destinando milhões de reais em recursos para os nossos territórios. Escrevemos aqui para dizer que isso é uma mentira!

Depois de três meses de pandemia da Covid-19, orgulhar-se agora de estar conseguindo distribuir cestas básicas é muito pouco. Desde o início, estamos denunciando o avanço do coronavírus em direção às Terras Indígenas e os riscos de contaminação em nossos territórios. Também estamos cobrando a necessidade da elaboração e implementação de planos de contingência consistentes, a retirada de invasores das Terras Indígenas e a proteção de nossos territórios. Não fomos ouvidos!

Decidimos empreender a tarefa de acompanhar, levantar, sistematizar e divulgar dados dos casos da Covid-19 subnotificados pela Sesai que, reiteradamente, se nega a reconhecer os indígenas nas cidades como indígenas, como bem deixou claro o Secretário da Sesai em sua fala preconceituosa e racista na coletiva, quando afirma ser “muito difícil a questão da autodeclaração” dos indígenas.

Nossos dados, ao contrário dos apresentados pelo Secretário e comemorados como se já tivéssemos vencido a Covid-19, vêm diretamente das pessoas que estão sentindo na pele o despreparo dos órgãos indigenistas e de saúde do Estado brasileiro no enfrentamento da doença entre os indígenas, mostrando justamente o contrário: que a pandemia avança muito rapidamente e de forma assustadora dentro das Terras Indígenas.

A fala do Secretário e os esforços recentes do governo Bolsonaro através do Ministério da Saúde em mascarar o avanço da Covid-19 no Brasil só reforçam a necessidade e importância dos dados levantados por nós, movimento indígena! Até o dia 09/06/2020, contabilizamos 2908 casos confirmados de contaminados e 228 mortes entre indígenas nos nove estados da Amazônia Brasileira. Enquanto que os dados Sesai, computam 1716 confirmados e 75 óbitos pela Covid19.

Como a Univaja e a Coiab denunciaram ontem, ao contrário do que o Secretário afirmou, as equipes de saúde estão despreparadas e, em muitos casos, entrando em área sem cumprir quarentena e desrespeitando as estratégias de isolamento das comunidades. Na TI Vale do Javari, a própria equipe da Sesai entrou contaminada transmitindo a doença nas aldeias.

Ora, se nem as equipes estão sendo testadas, como confiar nos dados apresentados pelo Secretário, e na sua interpretação de que o contágio entre os indígenas já está caindo. Se nem os nossos parentes estão sendo testados em número suficiente?

Mas em um ponto concordamos com o Secretário, este Governo de fato age de forma integrada. Desde o início deste Governo, vimos o aumento drástico das invasões em nossas terras, incentivadas pelos discursos do Presidente.

Vimos a Amazônia pegar fogo, enquanto o Governo se preocupava em proteger o agronegócio e negar os dados da destruição da floresta. Vimos o ministério do Meio Ambiente afrouxar a legislação ambiental e as ações de fiscalização. Vemos as tentativas do Governo Federal legalizar a invasão dos nossos territórios ao querer liberar a mineração e o arrendamento. Vimos o Ministério da Justiça e Segurança Pública devolver à Funai para revisão estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas já aprovados.

Vimos a Funai editar medidas que restringem a atuação de servidores em áreas não homologadas e editar a IN09/2020 legalizando a grilagem ao reconhecer registro de terras privadas em cima das Terras Indígenas e áreas interditadas com presença de povos isolados. Vimos a tentativa de extinguir a Sesai e sua lenta desestruturação. Vimos, ontem, o Presidente da Funai dizer que é um “problema social” a retirada dos garimpeiros da TI Yanomami, dando a entender que a solução é regularizar o garimpo e o Secretário Especial de Saúde Indígena afirmar que a Sesai vai continuar discriminando indígenas que vivem nas cidades.

Diferente do que foi falado ontem na coletiva de imprensa, até agora a resposta da Funai e da Sesai à Covid-19 tem sido lenta, descoordenada e insuficiente. A Covid-19 entrou nas Terras Indígenas e está se espalhando rapidamente. Estamos à beira do caos, enquanto o Presidente da Funai e o Secretário da Sesai comemoram a vitória sobre o coronavírus e se gabam de um suposto trabalho bem feito. Mascarar a realidade não vai resolver o problema!

O governo está distante do que os povos indígenas têm demandando e alertado. Sabemos que existem bons profissionais nos órgãos públicos fazendo o possível, e até o impossível, nas pontas, mas é necessário que Funai, Sesai e Forças Armadas de fato elaborem e implementem um plano sério para salvar vidar e impedir efetivamente o avanço da Covid19 em nossos territórios.

A vulnerabilidade que tanto atribuíram ontem aos povos indígenas não é inata, ela é resultado do descaso do Estado e se reflete na alta letalidade da Covid-19 entre os indígenas Segundo os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a letalidade da Covid-19 entre povos indígenas chega a 8,8%, enquanto entre a população brasileira geral é de 5,1%.

Alertamos que estamos em uma batalha diária para sobreviver, não só ao Covid-19, mas ao desmonte das políticas indigenistas e da demarcação e proteção dos nossos territórios, ao avanço da cobiça às nossas terras e nossas vidas, aos assassinatos de lideranças, às medidas legislativas anti-indígenas do Governo Federal. Depois de resistirmos ao Covid-19, não é essa a “normalidade” do país que aceitaremos!

Manaus/AM, 10 de junho de 2020
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com