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A foto mostra um grupo de nove mulheres de diferentes idades em pé na frente de uma casa simples. A casa tem parede externa branca e está desbotada. Há uma placa acima da porta, mas o texto não está claro o suficiente para ser lido completamente. Há duas janelas visíveis, uma de cada lado da entrada.

Crédito : Inês Campelo/Marco Zero

Lute como uma paraibana

São as mulheres que conduzem as lutas sociais e defesa do meio ambiente na região da Borborema

Inácio França / 26/06/2024

Crédito : Inês Campelo/Marco Zero

Solânea (PB) – Produção de alimentos orgânicos, gestão coletiva de equipamentos e insumos, decisões tomadas em comunidade, cuidado com os recursos naturais e a biodiversidade. Para quem não conhece a serra da Borborema, na Paraíba, essa parece a descrição de uma utopia, mas é assim que milhares de famílias da região estão melhorando de vida enquanto enfrentam o aumento do calor e a diminuição das chuvas, principais efeitos do aquecimento global no semiárido brasileiro.

E isso não acontece por acaso nem surgiu do nada. A explicação está na luta das mulheres paraibanas.

Quem dá a pista para entender o papel das mulheres na Borborema é Maria do Céu Batista dos Santos: “Estamos dentro de tudo”. Ou seja, elas fazem parte de todas as formas de organização e mobilização social que acontecem.

A própria Maria do Céu é diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Solânea, integra a Associação Comunitária do Videl, localidade onde vive, e é coordenadora do Polo Sindical da Borborema – uma articulação de sindicatos rurais e associações de 13 municípios. A motivação foi herdada da mãe, Terezinha, “que tá no ‘movimento’ desde a luta pela terra com Margarida Alves”.

Aqui, vale uma pausa para lembrar de quem Maria do Céu está falando:

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Margarida Maria Alves liderou homens e mulheres que trabalhavam nas usinas, engenhos e fazendas da Paraíba do final da década de 1960 até 1983, quando foi assassinada por pistoleiros profissionais a mando de latifundiários da região. Ela presidiu o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoas Grande por 12 anos, período em que a entidade processou centenas de vezes os proprietários de terra por descumprimento dos direitos trabalhistas. Na época, eram raros os patrões que assinavam carteira de trabalho, pagavam 13º salário ou não colocavam crianças para trabalhar no corte da cana ou na colheita de abacaxi.

Sua memória inspira a Marcha das Margaridas, manifestação em que mulheres do campo realizam em Brasília a cada quatro anos desde 2000, e a Marcha pela vida das mulheres e pela Agroecologia, onde mulheres tomam as ruas de alguma cidade da Borborema e já vai na 15ª edição em 2024.

A articulação dos sindicatos no Polo Borborema, os mutirões e os fundos rotativos onde se faz a gestão coletiva de recursos sem interferência do poder público, são heranças das lutas travadas antes mesmo da redemocratização do país, em 1985, conforme explica Adriana Galvão Freire em sua dissertação de mestrado em Agroecologia pela Universidade Internacional da Andaluzia, na Espanha. Adriana é uma das coordenadoras da AS-PTA, organização não-governamental que atua na Paraíba desde 1993.

Mulheres estão presentes em todos os sindicatos do Polo, mas em alguns, como o de Solânea, ocupam os cargos da diretoria com ampla maioria. São elas também que estão à frente da rede de quitandas, lojas que comercializam os produtos da agricultura familiar da região, principalmente da marca criada pela Cooperativa Borborema, a Do Roçado, cujo carro-chefe é o flocão para cuscuz feito com milho orgânico.

Foi a geração de Maria do Céu, ou simplesmente Céu, quem assumiu o legado de Margarida e de quem lutou com ela. “Quando eu era criança já existia aqui a cultura de emprestar alimentos para os vizinhos que precisavam. Um pouco de café, cuscuz, farinha ia e vinha de um sítio para o outro. Isso a gente já fazia, mas agora fazemos em outra escala e dentro de um sistema organizado”, conta, durante um encontro na sede da Associação dos Pequenos Produtores de Bom Sucesso, Palmas e Goiana, comunidades distantes quase 20 quilômetros do Videl, onde mora.

Mais espaço social, mais peso político

O protagonismo feminino na condução das organizações sociais no semiárido paraibano se explica também pelo papel que elas passaram a exercer na estrutura da agricultura familiar. Com a migração dos maridos e filhos mais velhos para as capitais nordestinas ou estados da região Sudeste em busca de trabalho, alguém precisava garantir a alimentação de quem ficava. As mães, esposas e filhas assumiram essa tarefa e esse espaço.

Aos poucos, como diz Adriana Galvão em seu trabalho “reconquistaram e ressignificaram o quintal doméstico como área de propriedade e domínio da mulher, promoveram sua reorganização produtiva; a geração de renda e a aquisição de bens”.

Foto de Adriana Galvão: ela é uma mulher de meia idade, cabelos grisalhos cacheados, usando camiseta roxa com desenhos brancos que lembram xilogravuras. Ela está sorrindo para a câmera em um palco, à frente de caixas de som e tendo ao fundo dezenas de pessoas com camisetas brancas participando de uma manifestação.

Para Adriana Galvão, mulheres conquistaram espaço com luta social e gerando renda

Crédito: Acervo pessoal

Hoje, naquela porção do agreste da Paraíba os homens já não precisam migrar, mas ainda há quem trabalhe “para fora”, mesmo que seja construindo cisternas nos projetos de ONGs ou do governo. A casa e o sítio permanecem sob cuidados das esposas. Assim, era inevitável que passassem a interagir umas com as outras nos mutirões, fundos rotativos e encontros de capacitação.

Os desdobramentos são descritos assim por Adriana Galvão: “os ambientes criados para troca de conhecimentos foram essenciais para estimular a inovação por meio da experimentação técnica, e para a quebra do isolamento das mulheres. Elas se reconhecerem como uma identidade coletiva, passaram a formar uma base social. Nos espaços de construção de conhecimento, foram forjando sua ação política, baseada na construção de uma proposta feminista, que, aos poucos, foi redefinindo a construção da agroecologia”, explica a coordenadora de AS-PTA, que acompanhou de perto esse processo.

A descrição de um dia “comum” na vida de uma dessas mulheres dá ideia do papel exercido por elas. Todos os dias, Verônica de Macena Santos, de 45 anos, acorda antes do nascer do sol para “cuidar do roçado bem cedinho, depois vou cozinhar o café da manhã e o almoço, cuido das crianças antes de irem para a escola, dou ração e troco a água dos animais, boto roupa na máquina pra lavar e limpo a casa”. Depois, ainda participa das reuniões da associação comunitária ou do sindicato.

Ate as pendências com bancos, impostos e demandas nos serviços de saúde, é ela quem resolve.

Sua filha Letícia, de 20 anos, confirma que sua rotina de recém-casada é parecida com a da mãe, com a diferença dela ainda não ter filhos. Bem humorada, mostra o bíceps: “na roça a gente não faz academia, não. Isso aqui é de tanto carregar lata de água para dar de beber para os porcos”.

O relato de mãe e filha deixam claro que uma coisa não mudou na Paraíba: a divisão do trabalho doméstico. Maria do Céu, Maria Helena Maurinete, Marília, Josefa Vanda e a agende de saúde Maria José, as outras mulheres que, naquele dia nublado no final de maio, se reuniram no salão da associação confirmam que, além de assumir tarefas que antes cabiam aos homens, também precisam fazer aquilo que suas mães e avós sempre fizeram em casa.

Todas elas, porém, dizem acreditar que a próxima geração de homens e mulheres consiga fazer diferente. Cidinha, uma jovem de 19 anos do sítio Videl, comunidade distante 25 quilômetros de onde vivem Verônica e Letícia, encarna a esperança das suas conterrâneas.

Foto de Cidinha, mulher jovem de traços indígenas, de pele cor de cobre e cabelos castanhos escuros lisos. Ela está sorrindo para a câmera com o rosto emoldurado por folhas em um ambiente rural.

Cidinha é liderança entre jovens de Solânea

Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

Cidinha e os vegetais

Na Serra da Borborema, crianças e adolescentes são estimuladas pelos adultos a tomar contato com noções de agroecologia em redes de viveiros de mudas. Maria Aparecida da Silva mal tinha completado 12 anos quando entrou em um desses grupos.

Prestes a fazer o Enem pela segunda vez para tentar cusar Agroecologia o campus da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que fica entre Solânea e a vizinha Bananeiras, Cidinha conta que aprendeu a preparar mudas enchendo de areia os saquinhos de plástico preto onde os meninos e meninas um pouco mais velhos colocavam as sementes, regavam e distribuem nos viveiros cobertos pela tela que eles mesmo aprendiam a instalar para “quebrar” a luz do sol e reduzir o calor.

“Comecei a tomar gosto, a não exagerar no estrume, a colocar água na medida certa de cada planta. Isso mudou minha cabeça. Quando eu era criança eu só pensava em sair do sítio, ir morar na cidade, mas participar do movimento mudou meu pensamento”, recorda Cidinha, apelido de Maria Aparecida da Silva.

A falta de água era o que mais desmotivava os jovens a seguir na zona rural, mas com a chegada das cisternas o cenário mudou. “Eu lembro que meus pais e meus avós tinham de trazer água nos burros, era meia hora andando até o barreiro. Com uma dificuldade daquelas ninguém queria plantar”, recorda.

Em seu viveiro, ela tem mais de mil mudas de espécies diferentes. Hoje é ela quem orienta as crianças sobre os ciclos e exigências da glirícidia, moringa, leucena, barriguda, aroeira, baraúna, além da goiaba, da pinha, umbu, caju e graviola. A maior parte das mudas é cultivada nos 16 hectares de sua família, mas ela também distribui entre adolescentes da vizinhança para que montem seus próprios viveiros.

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A glirícidia (Gliricidia sepium) é uma árvore natural do México e América Central que pode chegar a 15 metros de altura. É uma planta forrageira, ou seja, suas folhas são usadas como alimentação para o gado.

A leucena (Leucaena leucocephala) é outra espécie centro-americana que se adaptou ao semiárido. Pode alcançar três metros de altura ainda no primeiro ano plantio e fornece proteína em abundância para bovinos, caprinos e suínos.

Quanto à moringa (Moringa oleifera), não se tem certeza sobre sua origem, mas tudo indica que ela vem do noroeste da Índia, da região da cordilheira do Himalaia. Além de ser forrageira, suas flores podem ser usadas para fabricação de cosméticos e suas raízes evitam a erosão.

Já a aroeira (Myracrodruon urundeuva) e a baraúna (Schinopsis brasiliensis) são nativas da caatinga e têm papel importante na ecologia do bioma, pois são as principais árvores na composição das paisagens vegetais do sertão nordestino. Segundo pesquisas da Embrapa, estão associadas à fauna local, onde suas folhas, flores e frutos servem de alimento para répteis, aves, mamíferos e insetos, principalmente abelhas)

 

As mulheres e o clima

Antes, quando chegava o mês de dezembro, o roçado começava a ser preparado para receber as sementes em janeiro ou fevereiro, quando a chuva caía, e não em maio e junho, como está acontecendo de uns tempos pra cá.

Juá só caía do pé no inverno, agora não tem época certa, cai até no período da estiagem.

Formigas, abelhas e maribondos mudaram de comportamento.

Em 2024, dias de chuva pouca e fina são intercalados por dias muito quentes, contrariando a percepção local de que todo ano que terminava no dígito 4 tinha um inverno bom.

Já tem gente deixando de plantar feijão mulatinho, que requer mais água, para cultivar apenas o macassa.

Para as mulheres dos sítios Bom Sucesso, Palma e Goiana esses são os efeitos locais das mudanças climáticas globais.

Foto de Valdenira Macena e seu marido José. Os dois estão parados olhando para a câmera com semblante sereno na porta da casa deles. Ela é negram de cabelos presos, usa uma camiseta preta estampada e uma bermuda jeans. Ele é um homem de pele bronzeada usando chapéu, camisa cinza de mangas azuis compridas e calça jeans. As paredes da casa são de um tom intenso de rosa e, de cada lado da porta, no alto, há um candeeiro ou liminária de metal usados como elementos de decoração.

Valdenira entrou no movimento social e levou munto o marido João Carlos

Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

Uma dessas mulheres é Valdenira, irmã de Verônica, a mais conhecida entre as lideranças da comunidade por atuar desde os tempos em que era uma jovem catequista. Ao contrário da irmã e do pai, o falecido Antônio Macena, ela nunca gostou de participar de reuniões, mantinha distância da associação e, em consequência dos mutirões, dos fundos rotativos de gestão compartilhada que garantem a aquisição de bens para as famílias participantes.

Há dois anos, isso mudou.

De tanto observar a natureza ao seu redor mudar e a produção diminuir, Nira deu o braço a torcer.

“Eu sou muito tímida, ficava em casa fazendo crochê, no máximo cuidava das ovelhas, mas decidi participar das reuniões das mulheres porque eu gosto muito de planta e de bicho. Tinha que dar um jeito de fazer as coisas melhorarem no sítio”, conta Valdenira, com voz baixa, sem o costume de dar entrevista ou expressar seus pontos de vista, o oposto de Verônica.

Ela entrou e seu marido foi junto. João Carlos tem participado dos mutirões de silagem, ocasiões em que os vizinhos se juntam para fazer colher, triturar o milho a ser usado como alimento dos animais e cavar enormes buracos onde a silagem vai ficar estocada até ser usada nos meses de estiagem.

“Devia ter entrado na associação e no fundo rotativo antes. Em dois anos, já recebi a cisterna, o sistema de reúso da água e a tela para o galinheiro”, detalha, explicando que, antes disso, já não estava conseguindo sequer criar galinhas, pois com os animais silvestres cada vez mais escassos, as raposas vinham comer as aves do seu sítio.

Desde que começou a fazer parte da luta, Valdenira não perde uma Marcha pela Vida das Mulheres da Serra da Borborema.

  • Para ler as outras reportagens da série especial A reinvenção do Nordeste:
A imagem retrata uma grande concentração de pessoas ao ar livre durante o dia. A maioria das participantes são mulheres, que caminham juntas em uma marcha ou manifestação. Muitas delas seguram faixas e cartazes, além de vestirem camisetas roxas e liláses. A multidão é densa e se estende até o fundo, onde várias tendas brancas estão montadas. O cenário parece ser uma área gramada com algumas partes de terra, e há árvores e uma colina ao fundo. O céu está nublado, sem sol visível.

Mulheres da Borborema já realizaram 15 edições da Marcha pela Vida das Mulheres

Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.