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Crédito: Arnaldo Sete / MZ Conteúdo
A parábola do joio e do trigo presente na bíblia carrega uma lição sobre a paciência e a justiça divina. Entender e respeitar o tempo da colheita é sinônimo de colher os melhores frutos, aqueles que vão alimentar a comunidade. É preciso cuidado, atenção, sabedoria e serenidade para ter boas recompensas. Portanto, o resultado depende da dedicação daqueles que cultivam. Dedicação que pude conhecer no olhar e nas palavras das agricultoras que transformaram terrenos baldios da Região Metropolitana do Recife em hortas comunitárias produtivas.
As hortas resultam de um projeto realizado pela Centro Sabiá, em parceria com outras duas organizações não governamentais, a Casa Mulher do Nordeste e a ONG Fase, e possibilitou que mulheres produzissem seus próprios alimentos em terrenos antes inutilizados em 15 comunidades da RMR.
No lugar em que antes funcionava um matadouro, no limite entre Recife e Olinda, o Nascedouro de Peixinhos é um espaço de encontro, mas ganhou um novo aspecto com a criação da Horta Dandara. Situada bem ao lado Biblioteca Multicultural Nascedouro, a plantação mudou a paisagem, os ares e o astral do espaço, que agora reúne mulheres em uma atividade contínua de cuidados com a terra e diálogos capazes de promover uma discreta, mas significativa revolução.
O dia começou com chuva naquela terça-feira e, quando chegamos na Horta Dandara, por volta das 10h, o cheiro de terra molhada estava no ar. As mulheres já estavam regando, podando ou admirando as mudas e árvore plantadas por elas. Majestosas, os pés de banana, berinjela e mamão chamaram logo a atenção. Mas havia também belas flores em um canteiro que mais adiante descobri que era o xodó de Maria do Carmo. Umas das mais bonitas eram as que brotavam do pé de Urucum, fruto vermelho que possui uma pigmentação utilizada pelos indígenas para fazer pinturas corporais. Maria José da Silva, conhecida como Dona Nalva, fez questão de mostrar a utilidade do fruto ao passá-lo em seus lábios: “Você passa assim, pode usar como maquiagem, pode até comprar aqueles batons de cacau para misturar, fica bem bonito”, disse a agricultora enquanto manuseava o urucum.
O atributo de agricultora chegou recentemente e é motivo de muito orgulho e alegria para Dona Nalva, que já sobreviveu a dois derrames e agora atribui boa parte da melhora na saúde ao trabalho na horta: “Isso aqui é uma terapia para mim, antes eu ficava em casa triste, agora a gente vem pra cá, planta, rega, colhe, aprendemos a cuidar da terra. É bom demais pra saúde da gente”. A vida das plantas é sinônimo de vida para as agricultoras que veem cada semente, cada muda e cada pé de árvore como filhos. “Eles são bebezinhos, são todos bebezinhos que se a gente não cuidar morre”, afirma Dona Nalva ao se referir ao pé de cacau que está crescendo.
O local, que antes era um terreno abandonado e cheio de entulhos, agora é uma área verde com produção de hortaliças, legumes e frutas. Além de funcionar como área de convivência onde as mulheres podem falar, ouvir e se sentir acolhidas ao compartilhar suas experiências de vida, como defendeu a agricultora Maria do Carmo Gomes: “Me falaram da horta e me chamaram pra participar em um momento em que eu tava sofrendo muito, meu marido tava doente, eu me sentia muito sozinha, e aqui a gente tá sempre juntas, é um momento em que eu esqueço um pouco dos problemas”. Cuidar do canteiro das rosas é a atividade preferida de Maria do Carmo e quando ela fala em estar sempre juntas é notável que ela se refere não só as suas companheiras agricultoras.
O processo de comunicação que surgiu junto com a formação da horta Dandara também resultou em uma articulação e incidência política dessas mulheres e, atualmente, as agricultoras possuem uma cadeira no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional de Olinda. O Nascedouro de Peixinhos é de posse da Prefeitura do Recife, porém o público atendido pelo equipamento social é majoritariamente de Olinda, o que dificulta as ações de manutenção e funcionamento do prédio.
Durante a visita à horta, compartilhei com as agricultoras a minha dificuldade em cultivar plantas e mudas em meu apartamento, falta dedicação e paciência, coisas que elas têm de sobra e, claro, fizeram questão de me ensinar. Saí de lá com mudas de três espécies diferentes nas mãos e muitas dicas de como mantê-las vivas. Ainda não arranjei um vaso tão bonito quanto elas merecem para colocá-las (na verdade, me falta tempo para encontrar), mas em uma garrafa pet cortada elas seguem sobrevivendo e dando vida ao meu terraço. Tento percebê-las como bebezinhos assim como ensinou Dona Nalva.
Há pouco mais de 20 quilômetros de distância da Horta Dandara, em Jaboatão dos Guararapes, está a Horta Espaço Verde, no Centro Social Urbano João de Deus. Em um espaço menor e em terreno menos agricultável, devido ao solo argiloso, a horta prospera e também dá frutos para as mulheres da comunidade que integram o projeto.
Logo de início é possível notar que apesar das adversidades, as hortas comunitárias têm algo em comum: a dedicação das mulheres, em sua maioria negras e com mais de 40 anos. Rostos familiares, parecidos que carregam satisfação em seus olhares ao falar das plantações.
A coletividade também é fator imprescindível para o êxito na colheita. Durante a nossa visita, as agricultoras compartilharam dicas de como diminuir os fungos e pragas que assolavam a plantação, recentemente, a horta passou por uma infestação de caramujos e ainda está em processo de recuperação. Sinônimo de que os cuidados estão surtindo efeito, as agricultoras mostraram orgulhosas o pé de tomate que já estava brotando e fizeram questão de tirar foto perto da planta.
Assim como na Horta Dandara, a incidência política é ponto forte da Espaço Verde. Neide Silveira, articuladora do projeto de formação da horta, junto com o Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, conta das dificuldades para a criação do espaço agricultável: “aqui era um terreno abandonado, servia até para prática de crimes, e há muito tempo a gente queria dar outra função para o local, criar uma horta, mas faltava material e também alguém para nos ensinar a cultivar”.
Foi durante uma reunião do Fórum de Mulheres de Pernambuco que Neide, líder comunitária reconhecida em Jaboatão e protagonista nas lutas em torno do Monte dos Guararapes, foi indicada para compor o projeto de criação e manutenção de hortas comunitárias do Centro Sabiá. Em pouco tempo, ela conseguiu restaurar e produzir no terreno do Centro Social. Agora, as agricultoras que integram a horta querem ampliar o projeto e levá-lo até as escolhas do município de Jaboatão dos Guararapes. “Nossas escolas possuem muitas áreas onde podemos criar hortas com produção que podem ser usadas na alimentação dos próprios alunos, então nós queremos nos reunir com representantes da prefeitura para apresentar uma proposta de criação de hortas”, disse Patrícia Silveira.
De acordo com a assessora técnica do Centro Sabiá, Simone Arimatéia, os espaços agricultáveis gerados pelo projeto das hortas comunitárias ainda não possuem uma produção que possa ser comercializada, mas a articulação e a incidência política das mulheres agricultoras pode gerar projetos e políticas públicas relevantes para os municípios. “A criação de hortas em lugares onde não se pensou que era possível produzir comida com qualidade é uma grande vitória não só para as agricultoras, mas para toda a comunidade onde elas atuam”, disse Arimatéia.
O protagonismo das mulheres não resulta na exclusão de homens na produção das hortas, muitas delas levam seus filhos e netos para contribuir na agricultura, reforçando assim o senso coletivo, afinal, o mais importante do projeto é o compartilhamento de experiências e saberes. À prova disso está Manoel Joaquim de Andrade, conhecido na horta como seu Manuel. Integrante da Horta Espaço Verde, o agricultor que possui um sítio no município de Moreno, usa de seu conhecimento para ajudar na plantação urbana. “Eu gosto demais daqui, passo uns dias lá no sítio, depois venho pra cá, ajudo o pessoal aqui”, disse Seu Manuel que divide seus dias entre Moreno e Jaboatão desde que tomou conhecimento do projeto graças à esposa, que frequenta o Centro Social Urbano João de Deus
Apaixonado pela agricultura, seu Manoel mostrou cada planta da horta com cuidado e quando me interessei pela semelhança da aparência da Salsinha e do Coentro, ele fez questão de me mostrar como o cheiro é determinante em caracterizá-los. E depois, enquanto tomávamos um café, ele ficou me fitando, como quem ainda tinha algo a dizer. Ao me despedir, ele revelou o que tanto queria: precisava esclarecer a diferença entre o coentro que chegou até a horta já crescido, em muda, e o coentro plantado. Me explicou direitinho como seria o canteiro do coentro que ele mesmo iria cultivar.
Localizada no bairro de Nova Descoberta, na zona norte do Recife, a Horta Resistir é Preciso recebeu esse nome por causa dos desafios enfrentados para se manter em atividade. O primeiro desafio é o local em que foi construída, um terreno de “chão duro”, de pedras, onde seria impossível imaginar o crescimento de plantas, mas graças ao sonho das mulheres em revitalizar o espaço, a horta nasceu. Em seguida, vieram as fortes chuvas que comprometeram boa parte da parte da plantação. E por último, mas não menos importante, o desafio de manter as mulheres em atividade na horta, pois, como explica a agricultora Adriana Mendes: “muitas mulheres precisam trabalhar, cuidar da casa, dos filhos, e acabam sem tempo de continuar na horta”. O grupo que começou com cerca de 20 mulheres hoje só restaram sete agricultoras.
Porém, aquelas que permaneceram, levam o trabalho a sério e não apenas se dedicam para manter a horta como querem ampliar a capacidade agricultável do território. “Surpreendentemente essa foi a horta do projeto que mais colheu. Foi um volume muito grande de hortaliças, quiabo, couve, berinjela”, contou Simone Arimatéia, que auxilia as mulheres na plantação.
O empenho tem como o principal objetivo a colheita que serve de alimento para as próprias mulheres, mas a motivação maior segue sendo o efeito terapêutico e educativo presente no processo da agricultura. “Aqui a gente aprende muita coisa, aprende a como regar, aprende sobre compostagem, sobre as sementes, tudo isso é muito importante, além de ser uma terapia pra gente. A gente chega aqui e esquece dos problemas”, declarou Dianira Lima.
“A gente poder comer uma fruta, um legume, uma folha que não tem agrotóxicos, plantadas e colhidas por nós mesmo é muito importante também”, acrescentou Silvania Borges. A agricultora me pediu para provar os tomates cerejas que elas haviam acabado de colher, para que eu sentisse a diferença no sabor e a sensação que eu tive é que o vegetal já estava temperado de tão suculento e saboroso. Durante o mês de julho, período chuvoso na Região Metropolitana do Recife, não é um bom momento para a colheita e as agricultoras lamentaram por eu não poder levar frutos para casa, prometi voltar para buscá-los no momento oportuno.
A impressão que tive durante as visitas é que todas as agricultoras fizeram questão que eu experimentasse os prazeres que elas sentem nas hortas comunitárias e todas me entregaram algo valioso: histórias contadas, planos para o futuro, dicas de como plantar em casa, mudas de plantas, um pouco de salsinha e coentro, tomate cereja, um convite para voltar.
Achei encantador o fato do meu encontro com as agricultoras terem ocorrido justamente no momento em que eu pensava em sobre o que escrever para celebrar o Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, comemorado em 25 de julho, porque o que eu procurava estava ali, bem colocado. A iniciativa do Centro Sabiá, que promove a criação das hortas comunitárias em áreas urbanas, é composta por uma maioria de mulheres, que representam mais de 80% dos beneficiários do projeto, sendo 36% de mulheres negras.
Afinal, quem esteve sempre à frente na luta para garantir alimento e saúde para as famílias senão as mulheres negras? Quem tem uma história marcada pela relação com a terra e seus frutos e se preocupa diariamente em construir um futuro mais justo em termos socioeconômicos e ambientais? São justamente aquelas que estão na base da pirâmide e que conseguem mudar uma sociedade inteira com um aparentemente simples mas complexo movimento.
Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.