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Ocupe Estelita celebra dez anos da ocupação e quer garantir uso público do cais

Maria Carolina Santos / 17/06/2024
Foto de um grupo de dezenas pessoas reunidas ao ar livre, aparentemente em uma manifestação ou protesto. Elas estão posicionadas em frente a uma parede com faixas e cartazes, alguns dos quais contêm texto. Os indivíduos estão fazendo gestos variados, como levantar as mãos e fazer sinais de paz. A cena ocorre durante o dia ou início da noite, pois ainda há luz no céu e sombras no chão.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Dez anos após a ocupação durante 27 dias do terreno do Consórcio Novo Recife, no Cais José Estelita, aconteceu neste domingo (16) a inauguração popular do parque da Resistência Leonardo Cisneiros. Foi uma mistura de sentimentos: ainda que o principal objetivo do Movimento Ocupe Estelita não tenha sido alcançado — a anulação do leilão do terreno — houve conquistas na área do cais e o movimento deixou um importante legado na luta pelo direito à cidade. Agora, o Ocupe Estelita segue para uma nova fase. Para marcar uma década da ocupação, os integrantes do grupo voltaram a se reunir e a acompanhar as ações de contrapartida do consórcio formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL.

A conquista do Parque da Resistência Leonardo Cisneiros deu novo ânimo ao movimento. “A gente viu que o parque era uma conquista, mas era também um chamado de luta, porque a gente não quer de jeito nenhum que esse parque se torne um jardim de prédio, ou algo nesse formato, que, por mais que não tenha muro, fique parecendo com um condomínio fechado. Já tivemos uma experiência, em 2013, em ocupar o deque das Duas Torres, que quando ciclistas foram passear por lá, os seguranças mandaram sair”, lembra a arquiteta e urbanista Cristina Gouveia, militante do Ocupe Estelita.

O nome do parque homenageia o militante Leonardo Cisneiros, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), engajado na luta pelo direito à cidade – fonte da Marco Zero em tantas reportagens – e uma das lideranças do Ocupe Estelita. Ao longo desta reportagem, há depoimentos que prestam homenagem a ele, que faleceu em abril de 2021, aos 44 anos, após um infarto.

“O que a gente queria mesmo era muito mais do que medidas de mitigação, mas elas são decorrentes daquela luta e que não existiriam se o Cais não tivesse sido ocupado”, lembra Cristina. “Essas medidas são alinhadas numa luta para que esse parque se torne de fato um parque popular e, através dele, essa área seja apropriada pela cidade do Recife”, diz.

Entre as medidas que foram estabelecidas lá em 2014 estão a construção de 200 moradias de habitação popular pelo Consórcio Novo Recife e a demolição do viaduto do Forte das Cinco Pontas, integrando a avenida Dantas Barreto e o Cais de Santa Rita à região.

“Uma vez que vai ser demolido o viaduto das Cinco Pontas vai ter um acesso que o pedestre passa direto ali do Cais de Santa Rita, que é uma área super popular e que está sendo intensamente gentrificada, já que as intervenções que estão sendo feitas ali não pensam nas pessoas que são as que ocupam e vivem o centro desde sempre. O fluxo das pessoas do comércio popular da avenida Dantas Barreto, através de uma esplanada, vai chegar volumosa na frente d ‘água, trazendo toda vida do centro, do Mercado Popular de São José e cumprindo, finalmente, uma função de conexão na cidade”, avalia Cristina.

Leonardo Cisneiros, segundo a advogada Luana Varejão

“Léo foi para mim e para muita gente, além de amigo, um grande mestre que indicou caminhos de análise, questionamento e luta para discussão dos direitos urbanos no Recife. Ele era capaz de fazer conexões extremamente profundas sobre leis, políticas e práticas que nos permitia ver os riscos que estavam na mesa. Era uma pessoa muito generosa, que dedicou a vida para o Recife.”

Outra conquista foi um maior uso misto – residencial e comercial – de algumas das 12 torres que serão construídas – duas já se encontram prontas. “O fato de ter lojas no térreo, por mais que não sejam as lojas que a gente vai frequentar, é melhor do que um muro. Há também a mudança do sistema viário. A gente quer que esse seja um parque popular, mas isso não vai acontecer se ninguém fizer nada”, lembra a urbanista.

O ativista Pedro Stilo, do coletivo Pão e Tinta, afirma que o lugar tem que ter pertencimento, para ser ocupado pela população. “Temos que ocupar esse lugar aqui, entendendo a importância para ressignificar de verdade. Chamando as comunidades que ficam vizinhas, chamando a Vila Sul, que é a ocupação que ficou aqui depois do Ocupe Estelita. Isso aqui não pode ser o playground dos playboys que vão morar aí nos prédios. Isso aqui tem que ser um lugar que a gente ocupe, que faça jus ao nome. Mas isso perpassa também por incentivo da nossa galera, dos movimentos sociais e da própria prefeitura. Que também precisa pegar no colo a responsabilidade de ter atividade nesse lugar. De fazer desse lugar um espaço cultural”, avalia.

O mandato do vereador Ivan Moraes (PSOL) defende que os galpões ainda existentes, que ficam mais próximos ao viaduto das Cinco Pontas, sejam usados para atender a uma reivindicação antiga das agremiações do carnaval do Recife, que é a de ter uma passarela fixa para os desfiles. “É uma área que já é pública e basta a prefeitura do Recife querer fazer. Até recurso do Governo federal tem“, afirma o vereador.

Leonardo Cisneiros, segundo o urbanista Cristiano Borba

“Léo sempre foi uma liderança, pelo próprio perfil: era alguém que debatia muito bem com diversas pessoas, mas também tinha uma capacidade de articulação institucional grande e conhecimento jurídico muito apurado. Ele era um grande catalisador de informações e foi uma figura símbolo, de fato. Um parque próximo ao terreno do Cais se tornar um espaço público novo e com o nome dele é no mínimo simbólico. É um desses ganhos que o modo do Ocupe Estelita de lutar pela cidade teve.”

A imagem mostra um muro com vários cartazes e grafites. À esquerda, há um grande cartaz em preto e branco de um homem com barba e bigode. O texto nesse cartaz não está totalmente visível. No centro da imagem, há cartazes menores em branco com texto preto que diz “OCUPAR! RESISTIR! REPETIR!. No centro há outro caratz menor vermelho com letras brancas cujo texto não é legível. O próprio muro apresenta sinais de desgaste e algumas marcas de grafite.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
A imagem retrata uma cena noturna ao ar livre. No lado direito, há uma faixa branca presa a um tronco de árvore, com o texto “Ocupe Estelita +10” impresso em preto, acompanhado por um desenho estilizado de trevo verde com oito folhas. O fundo mostra uma vista de rua desfocada, com luzes de veículos em movimento criando rastros vermelhos devido à fotografia de longa exposição. O céu está escuro, com nuvens visíveis, sugerindo que pode ser tarde da noite.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
A imagem mostra uma grande faixa branca com texto em preto em português que diz “A CIDADE É NOSSA. OCUPA!” A faixa está pendurada em uma cerca de madeira avermelhada, e há elementos de um ambiente urbano visíveis, como uma calçada, grama e o céu, provavelmente ao amanhecer ou ao entardecer devido à iluminação suave

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
A imagem retrata um grupo de pessoas ao ar livre, envolvidas em uma manifestação pública ou protesto. O céu está nublado, sugerindo que pode ser final da tarde ou início da noite. Várias pessoas seguram cartazes, embora o texto neles não esteja totalmente claro a partir deste ângulo. Um dos cartazes parece dizer “EM DEFESA DA”, mas o restante está obscurecido. Na frente, há indivíduos segurando sinalizadores de fumaça que emitem cores vibrantes de verde e rosa, criando um efeito dinâmico e visualmente impactante contra o céu mais apagado.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

PCR já estaria tocando projeto do parque

Na lei do Plano Específico para o Cais de Santa Rita, Cais José Estelita e Cabanga, aprovada em 2015, há algumas delimitações de área pública para áreas verdes e dois parques. O evento para marcar os dez anos do Ocupe Estelita foi realizado no gramado que fica em frente à imensa placa onde se lê “Ressignificar”, colocada pelas construtoras dos prédios. O local exato do parque da Resistência Leonardo Cisneiros ainda não está oficialmente confirmado e militantes do Ocupe Estelita reclamam da falta de diálogo com a Prefeitura do Recife.

“Um parque previsto no Plano é o que vem sendo chamado de parque da memória ferroviária, que ficará na área que era propriedade da União e onde existiam os trilhos do trem. Há a proposta hoje de passagem de uma linha de VLT por lá, algo que precisa ser muito debatido, pois é uma área que está ocupada por mais de 700 famílias que estão morando à margem da Avenida Sul”, diz a advogada Luana Varejão.

Leonardo Cisneiros, segundo sua irmã, Daniela Arrais

“É uma alegria triste, porque tudo que a gente não queria é que ele não estivesse aqui. Mas uma vez que ele não está, é muito simbólico o parque levar o nome dele, não só pela luta dele, mas pela de todos. Estamos em um momento em que precisamos de espaços assim, para sairmos da individualidade de cada um olhando só para si. Um parque é uma vontade de se conectar com o outro, de estar em um comunidade, de ter lazer, cultura e conseguir descansar, inclusive para resistir. Fico pensando que ele acharia massa, é um ganho para a cidade”.

Apesar do prefeito João Campos (PSB) ter divulgado recentemente que conseguiu um acordo com a União para “dobrar a área pública” do Cais José Estelita, essa área já era a prevista na lei de 2015. “A gente vê uma celebração por algo que já se esperava, mas agora a gente quer que a prefeitura faça o papel dela, que a construtora faça o papel de uma empresa séria, que se se responsabilizou por 200 unidades habitacionais. Queremos a concretização do que já conquistamos e muito mais. O principal legado do Ocupe Estelita é dizer que o que se faz na cidade precisa estar de acordo com o bem comum. Nós não aceitaremos nenhum passo atrás, pelo contrário, agora a gente quer mais”, afirma Ivan Moraes.

O outro parque do plano específico fica na frente do Novo Recife e é descrito como um parque linear na frente d’água, percorrendo onde hoje está a avenida, entrando na avenida Dantas Barreto. Seria esse o parque da Resistência Leonardo Cisneiros? “Não temos certeza disso, pois não existem informações concretas da prefeitura. Recentemente fizemos um pedido de informação sobre o local do parque e as contrapartidas que são obrigação do consórcio Novo Recife, mas a prefeitura não nos deu retorno sobre o encaminhamento e execução dessas contrapartidas”, diz Luana Varejão.

A Marco Zero solicitou uma nota da Prefeitura do Recife sobre onde exatamente será o parque e como será feita a construção do projeto, mas não obteve resposta.

O advogado ambiental Caio Scheidegger, militante do Ocupe Estelita, afirmou que há informações de que a prefeitura do Recife já teria selecionado o escritório de arquitetura Benedito Abbud, de São Paulo, para o projeto paisagístico do parque.

Leonardo Cisneiros, segundo o vereador Ivan Moraes

“Leonardo Cisneiros era um dos corações do Movimento Ocupe Estelita. Era um CDF: não se contentava em debater a partir do que se dava para ver, era um cara que sabia pesquisar, que entendia das leis, que entendia de zoneamento, que conhecia outros exemplos pelo mundo. Léo era e é uma referência no direito à cidade. Colocar o nome dele no parque traz pra gente um símbolo importante. Toda a vez que a gente passar por ali e ver aqueles prédios, que trazem uma sensação ruim, vamos ver um parque que vai dar para gente a certeza de que quando as pessoas se unem com um objetivo comum, elas sempre avançam”

“Agora que há essa homenagem, esse reconhecimento da luta de Léo Cisneiros pela prefeitura do Recife, então o que todos os amigos, a família e as pessoas aqui do Estelita e do Direitos Urbanos (grupo onde o Ocupe Estelita teve início) gostariam é fazer uma ativação, uma escuta para que esse espaço seja mais coerente, que realmente se abra para a cidade toda, que a gente tenha de fato uma agenda viva e não seja apenas o jardim de um prédio”, diz Scheidegger.

“Quem acompanha esse tipo de projeto na prefeitura é o Instituto Pelópidas Silveira, mas acho que por essa área aqui ficar perto do centro seria interessante estar dentro de um plano de zeladoria como o Recentro, que é um projeto da prefeitura. Algo que falta nesse tipo de projeto de parque é ter um plano de zeladoria contínuo”, critica o advogado.

O doutor em desenvolvimento urbano Cristiano Borba, do conselho superior do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-PE), explica que o que há agora é um canteiro com muito potencial, em uma frente d’água. “Uma prefeitura que está procurando ser popular em todos os espectros da sociedade acatar essa reivindicação (o parque) de um movimento que é relativamente pequeno, mas é barulhento, é incoerente se não tiver participação popular. Chamar o Ocupe Estelita para discutir o que vai ser feito no parque seria necessário até em respeito à pessoa que dá nome ao lugar. Não fazer isso é uma contradição, é como se colocar o nome de Leonardo Cisneiros no parque fosse apenas um “cala boca” no movimento”, afirma Cristiano Borba.

Leonardo Cisneiros, segundo a urbanista Cristina Gouveia

“Ter um parque com o nome de Léo é um reconhecimento importante de alguém que foi uma referência em vários aspectos pra luta urbana no Recife. E também, esse nome, justamente pelo respeito, consideração e afeto que tanta gente tem por Léo, acaba sendo um estímulo também para que a gente continue lutando por esse espaço. Para que seja um parque não só público, como um parque popular, um parque que seja digno de ter esse nome, que seja mesmo ocupado pela população”.

Ele também alerta que é preciso ficar atento sobre como o projeto do parque será conduzido. “Se você simplesmente licita ou contrata alguém de modo obscuro, como foi a compra do terreno pelo consórcio Novo Recife, não há mudança alguma, não há evolução. É preciso ter coerência do começo ao fim, senão os propósitos se perdem”, acredita o urbanista. “Para definir como vai ser o parque, a prefeitura deveria chamar não só o Ocupe Estelita, como a população como um todo, quem mora do lado de lá da linha, quem mora do lado de cá da linha, quem mora do lado de lá da bacia do Pina. A questão é ter pessoas habilitadas para mediar e sintetizar essas propostas da população em um desenho de parque”, diz.

A foto mostra uma vista aérea de uma área urbana ao entardecer, pois o céu apresenta um brilho suave. Há uma grande área aberta com trechos de vegetação e árvores. Uma avenida bem sinalizada percorre a cena junto a um letreiro de letras verdes com a palavra ”ressignificar. Também há tendas montadas e um pequeno grupo de pessoas. Ao fundo, há um conjunto de arranha-céus que se destaca contra o horizonte.

Prefeitura ainda não deixou claro quais os limites do parque da Resistência Leonardo Cisneiros

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org