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Pesquisa revela perfil socioeconômico de ambulantes da Conde da Boa Vista

Maria Carolina Santos / 17/04/2019

Crédito: Maria Carolina Santos/MZ Conteúdo

Andar pela Avenida Conde da Boa Vista por vezes se confunde com uma caminhada com obstáculos. O trecho mais crítico é o miolo que se estende entre o bar Mustang até o Atacadão dos Presentes, passando pelo shopping: é um caos de ambulantes e barracas, muitas vezes dos dois lados da calçada, deixando um estreito túnel para o pedestre. O projeto da requalificação da avenida – que começou no dia 02 deste mês e deve ser finalizado somente no final do próximo ano – pretende mudar o ordenamento do comércio popular na via. E isso é um desejo em comum entre os ambulantes e a prefeitura. O impasse está em como esse ordenamento deverá ser feito.

Pelo projeto, apresentado à imprensa menos de uma semana antes do início das obras, há espaço apenas para 50 vendedores, que ficariam em fiteiros fixos. Hoje, 324 ambulantes trabalham na Avenida Conde da Boa Vista e suas esquinas. Um levantamento inédito feito pelo mandato do vereador Ivan Moraes (Psol) traçou o perfil socioeconômico desses vendedores e a importância que eles têm para a economia do centro do Recife.

Entre os dias 11 e 15 de março, a equipe composta por cinco pesquisadoras entrevistou e cruzou os dados de 304 ambulantes. A grande maioria (76%) é de homens. A faixa etária média está localizada entre 35-39 anos e 74% se declaram negros. As pessoas analfabetas representam 4,9% do total de entrevistados e 63,2% não chegaram a concluir o ensino médio. Das 192 pessoas entrevistadas que não têm o ensino médio completo, 139 são negras. Um retrato das desigualdades sociais brasileiras.

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Levantamento identificou 324 ambulantes na avenida. Foto: MCS/MZ

A pesquisa foi desenvolvida pelas sociólogas e pesquisadoras sociais Marília Gomes do Nascimento e Ana Cecília Nascimento Cuentro, com a colaboração no trabalho de campo/aplicação dos questionários da assistente social Lays Albuquerque.

No estudo, as pesquisadoras chamam atenção para o baixo número de mulheres como ambulantes. “Uma possibilidade para esse cenário é que da mesma forma que os homens são socializados como detentores legítimos das ruas, às mulheres esse direito é negado e ocupá-la representa também a disputa pelo espaço público, para pôr sua tela, seu carrinho de batata frita ou espetinho as mulheres enfrentam mais desafios, principalmente em um contexto social como o nosso em que as desigualdades de gênero e a violência fazem parte do cotidiano das mulheres”, afirmam, no documento.

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Além do perfil socioeconômico, o estudo também mostra as condições de trabalho das/os ambulantes e dos produtos comercializados. Ele aponta que três em cada quatro ambulantes estão na avenida devido à dificuldade de encontrar emprego. Dos entrevistados, 70% trabalham como camelô há mais de cinco anos e 56,6 % trabalham de 8 a 12 horas diárias.

É o caso, por exemplo, do vendedor de óculos Benedito Elias Macedo que já está há quase 20 anos na Boa Vista. Chega por volta das 8h da manhã e fica até 19h30. Ele ouviu por alto sobre as mudanças do projeto de revitalização e não concorda com os 50 fiteiros fixos. “Talvez fosse viável se desse para colocar todas as pessoas que necessitam trabalhar. Mas não tem como bater essa conta. As pessoas estão aqui porque precisam trabalhar. É a opção que tenho para viver honestamente”, diz Benedito.

Assim como ele, 95,7% dos camelôs não têm ponto fixado ao chão. Poder recolher o material ao fim do dia significa mais segurança e mais liberdade para trocar de ponto, em caso de chuva, por exemplo. Ao contrário de 44,7% dos camelôs da área, Benedito já teve carteira assinada. Foi comerciário por 15 anos. “A verdade é que eu não me qualifiquei”, lamenta.

As quase 12h de trabalho rendem a Benedito mais que um salário mínimo – pela pesquisa, 47,4% dos ambulantes conseguem ganhar de um a três salários, enquanto 50,3% recebem até R$ 998. É o caso de Lucineide Andrade que há quatro meses está vendendo garrafas de água na avenida. Desempregada há três anos, ela passa de cinco a seis horas na Boa Vista para complementar a renda familiar e ajudar a pagar o curso de assistente de dentista.

“Aqui o fluxo de pessoas é mais intenso, então a mercadoria tem saída. Mas não consigo nem de longe tirar um salário”, conta Lucineide, que lucra R$ 0, 50 centavos em cada garrafa de água vendida por R$ 1. Um ponto interessante da pesquisa é o fato de que o comércio popular dos ambulantes ajuda a movimentar o varejo formal: 71,4% das mercadorias vendidas são adquiridas em lojas, depósitos ou fábricas. Outros 20,4% são de fabricação própria/familiar e 6,6 % de fabricação de terceiros/artesanal.

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Perfil dos imigrantes senegaleses

Atraídos por promessas de prosperidade por conta da Copa do Mundo e das Olimpíadas, os senegaleses formam hoje uma comunidade de 220 pessoas em Pernambuco, a grande maioria na capital.

Leia mais:Imigrantes senegaleses vivem do comércio informal no Recife

O perfil dos 13 senegaleses entrevistados pela pesquisa é: homem cis; heterossexual (apenas um se autodeclarou pansexual); negro; de religião muçulmana; 42,9% concluíram o ensino médio; 76,9 % são casados (apenas 3 são solteiros), 84,6 % tem filhos (11 deles); residentes do bairro da Boa Vista, moram em apartamentos alugados.

Quase 70% tem dependentes, com uma quantidade de dependentes elevada, com destaque para três que possuem cada um, respectivamente 8, 10 e 15 dependentes no Senegal, principalmente crianças e adultos; 53,8 % responderam que decidiram ser ambulante por causa da dificuldade de encontrar emprego e 30,8% disseram que foi para ganhar mais para poder sustentar a família; 69,3% trabalham há mais de cinco anos no ramo.

A maioria trabalha mais de 8 horas por dia, com destaque para os 30,8% que trabalham 12 horas, tendo como mercadorias os importados (relógios, bijuterias). A média de salário informada é de apenas 1 salário mínimo e meio.

Diálogo com a Prefeitura do Recife

No dia 27 de março os ambulantes tocaram fogo em pneus e interditaram o cruzamento da Rua Gervásio Pires com a Avenida Conde da Boa Vista. Foi a forma da Prefeitura do Recife finalmente escutá-los, após meses do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal (Sintraci) solicitar participação no projeto da nova avenida.

Edvaldo, do Sintraci, no workshop na Unicap. Foto: MCS/MZC

Edvaldo, do Sintraci, no workshop na Unicap. Foto: MCS/MZC

Dois dias depois, foram recebidos na prefeitura. O projeto pronto, as obras já prestes a começar e a reconfirmação de que só haveria espaço para 50 ambulantes – ou seja, 249 ficariam de fora. A partir daí, o Sintraci pensou em alternativas. Uma delas foi procurar a Universidade Católica de Pernambuco e o mandato de Ivan Moraes.

Juntos, realizaram no fim de semana um workshop com estudantes e profissionais para pensar alternativas trabalhando em cima do projeto feito pela prefeitura. “É um apelo antigo nosso de que haja a formalização e uma padronização dos ambulantes. Nós também não queremos que fique do jeito que está, mas queremos que os ambulantes continuem na Boa Vista”, afirma o presidente do Sintraci, Edvaldo Gomes.

Em uma dos grupos do workshop, arquitetos da Unicap e estudantes mapearam os espaços vazios dentro do projeto para ver como encaixar os ambulantes. Tanto o resultado do workshop quanto da pesquisa sócio-econômica serão apresentados em uma audiência pública nesta quarta-feira, a partir das 9h, no plenarinho da Câmara de Vereadores, com a presença do secretário de Mobilidade e Controle Urbano João Braga.

O vereador Ivan Moraes está otimista de que a prefeitura irá rever o posicionamento em relação à retirada da maioria dos ambulantes. “A prefeitura alega que tem um cadastro com 79 ambulantes na via. Mas esse cadastro é de 2014, e muita coisa mudou desde então. Não havia acontecido o golpe de 2016, a PEC do Fim do Mundo, era outro Brasil. A crise se aprofundou e o desemprego também. A prefeitura fala dos fiteiros fixos de forma negritada, mas isso pode ser uma possibilidade a mais. Não estamos dando a questão como vencida. Há tempo para se discutir, a reforma vai durar até o fim do ano que vem. Vamos agora, com esta audiência, começar a conversa. Os ambulantes terão que ceder em algum ponto. E eles estão dispostos a dialogar, a negociar, também é do interesse deles de que haja regras”, diz.

O projeto completo da requalificação da Avenida Boa Vista está disponível no site http://novacondedaboavista.recife.pe.gov.br

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com