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Em 1994, Marcelo Mário de Melo, conhecido e respeitado militante petista, ex-preso político, escreveu um texto não muito longo, intitulado Manifesto da esquerda vicejante.
Era uma crítica mordaz aos modos e comportamentos da esquerda, práticas que já revelavam uma nova forma de agir politicamente, especialmente entre os companheiros que começavam a conquistar cargos importantes no Executivo e Legislativo. O texto só virou livro onze anos depois, em 2005.
“Para a infelicidade da esquerda e comodidade do autor, é lançado agora sem a necessidade de alterações substanciais”, escreveu o autor, na introdução.
Duas décadas depois de ter sido escrito, o “manifesto” pode ser lido hoje como uma premonição, até mesmo como uma profecia ao ocaso da esquerda brasileira. Está tudo lá, sem meias palavras e raro senso de humor. Mas faltou à esquerda ler. Mais que isso – faltou colocar em prática pelo menos alguns pontos fundamentais.
“A esquerda Vicejante” denunciava o “cupulismo” como “a mais requintada e repelente expressão da cultura política nacional”, e identificava seus “produtos de exportação”, as seguintes figuras:
“O liberal de Sala VIP, o democrata de condomínio fechado, o social-democrata de cobertura, o comunista cinco estrelas, o esquerdista de vitrine, o anarquista de salão, o agitador de corredor, o ativista da sala de espera, o dirigente de cadeira cativa, o pré-candidato a cacique, o cacique jovem-guarda, a liderança de outdoor, a transparência com vidro fumê”.
Sem medo do que poderiam achar os companheiros, Marcelo escreveu, em textos curtos, quase como se fosse um twitter diário (nos dias de hoje), propostas e palavras-de-ordem que têm uma enorme ressonância. Senão vejamos:
“Em lugar da esquerda autoritária, arrogante e autofágica, a esquerda auditiva, criativa e cativante”.
**
“Que a esquerda tenha a coragem de se olhar no espelho.
E sem maquiagem”.**
“Ampla distribuição de espelhos retrovisores para que todos também possam ver a própria cauda”.**
“Abaixo a caricatura política atual na militância!”**
“Partidos políticos: “meu marketing”, “meus votos”, “meus cargos”.**
“Sindicatos: “Meu dissídio”, “minha data-base”, “minha categoria”.
Também falava sobre a militância, outrora ruidosa e generosa, voluntária e criativa, hoje paga, acomodada e praticamente alheia ao que se chama de esquerda no Brasil
“Por uma militância com poesia, prazer, amizade e humor”.
Em alguns momentos mais densos, Marcelo destaca para a importância de lembrar mais da alegria dos que combateram a Ditadura, do que “suas chagas”.
“Que seja repensada a questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura, colocando-se em primeiro plano, não as chagas do seu martírio, mas o significado público e a responsabilidade de sua perda, as informações sobre suas vidas e seus jeitos de rir”.
Aos 71 anos, Marcelo Mário de Melo continua na esquerda, crítico dos modos de fazer política (e do que isso tem provocado na militância).
“Os governos do PT elevaram a renda, melhoraram a vida das pessoas, mas não fizeram um trabalho político. É muito natural que o povo queira mais”.
Trabalho político, por exemplo, que não foi feito em inúmeros canteiros de obra do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), que provocou uma migração interna de milhares de trabalhadores, sem que houvesse qualquer aproximação com essas multidões.
O “exclusivismo eleitoral e as articulações de cúpula”, segundo Marcelo, relegaram para segundo plano (ou até extirparam) o processo de organização e mobilização, que estavam no DNA do partido.
“Sou muito crítico da militância de esquerda que se limita aos cargos comissionados e ao parlamento. A tendência é esquecer a pressão popular. É um cacoete que se repete, ao longo da história – se isolar da base, graças ao aparato oficial”.
Ele batizou de “Esquerda Bienal” esta que só lembra que existe povo a cada dois anos, mas não entrega os pontos. Se considera um petista crítico, alinhado ao manifesto-programa de sua fundação.
Mas por trás do Marcelo crítico atento e bem humorado aos desvios e desvarios da esquerda, há outro – talvez outros. Trabalha em diversos projetos, que envolvem literatura, intervenções estéticas, invenções artísticas. As prateleiras da casa (feitas por ele mesmo) estão repletas de caixas com manuscritos, livros em fase de conclusão, pesquisas. Nos fundos do apartamento, há uma oficina para transformar qualquer objeto em arte.
O apartamento onde vive com a filha, na rua da Aurora, parece mais uma oficina de criação. Mesmo aos 71 anos, ele lembra aqueles cinquentões de cabelos brancos, com uma extrema agilidade física e mental. Defende a vida com poesia, prazer, amizade e humor.
Autor de vários outros manifestos, um deles é “pela poesia no cotidiano”.
Defende um “viver poético. Em qualquer casa, por mais simples que seja, pode ter uma prancha, com poesia escrita.
“Não existem coisas poéticas ou não poéticas, mas o olhar poético ou não poético sobre as coisas”, diz.
Ele acredita que é preciso “tirar aquela pele de charque dos olhos”, e que o dia a dia casa bem com a linguagem da poesia.
No Manifesto Masculinista, lançado há trinta anos, critica o “terror machista, a ditadura clitoriana e o autoritarismo gay”, se posiciona contra o serviço militar obrigatório só para homem, pede a “liberação da lágrima”, e faz uma lista de alguns direitos importantes para os homens:
“Queremos receber flores; queremos trepar por baixo; pelo direito de broxar sem explicação; pela capacitação para as funções femininas”.
E revela um plano: quer chegar aos 102 anos de idade. Mais precisamente, a 2046, tempo suficiente para assistir mais oito copas do mundo.
Como pretende viver muito, Marcelo poderá ver brotar novamente uma esquerda que sonha há tempos:
“Sejamos uma esquerda com raízes, caules, folhas, flores e frutos”.
Foram oito anos, 43 dias e 19 horas de cadeia. Ele tinha 27 anos, quando foi preso (militava no clandestino PCBR) e trancado no presídio de Itamaracá, em março de 1971. Só voltaria a ver uma rua em abril de 1979.
Foram cinco greves de fome. Na terceira, em 1975, encarou 25 dias e 12 horas só na base de água-de-presídio. Outra, em 1977, durou 23 dias.
A primeira greve, que durou apenas 36 horas, foi em torno de reivindicações carcerárias. A segunda, em julho de 1975, foi para deter um processo de quebra da comunidade dos presos políticos de Itamaracá, que seriam distribuindo em diversas unidades militares.
“Começou, numa quinta-feira, com a minha transferência, junto com Luciano de Almeida, natalense, para o Quartel de Cavalaria, no Bonji. Começamos a greve de fome no mesmo dia, os companheiros de Itamaracá entraram no sábado. Retornamos à penitenciária perto do fim do ano”.
A separação do conjunto foi detida, mas como retaliação, retiraram seus os companheiros Carlos Alberto Soares e Rholinne Sonde Cavalcante, condenados à prisão perpétua, e os mantiveram isolados. As duas greve seguintes, em 1977 e 1978, foram pelo retorno deles.
“A de 1978 foi a primeira greve nacional dos presos políticos do Brasil, puxada por Itamaracá. Todos os presídios entraram em greve. A segunda greve nacional de presos políticos, durante a ditadura, foi pela Anistia Ampla, Geral e irrestrita, quando eu já estava solto”.
Marcelo Mário de Melo lembra de tudo. Lembra especialmente o fatídico dia em que alguém da repressão decidiu que era preciso trocar as cercas de arame farpado, em volta do presídio, por altos muros de concreto.
“Antes, a gente pelo menos tinha a linha do horizonte, a noção de algo livre. Depois do muro, veio o enquadramento. A gente só via o concreto”.
O único recurso dos presos foi fazer um pequeno buraco no muro, onde espiavam o mundo lá fora, de vez em quando.
Marcelo saiu do presídio com 35 anos e não sabia ainda a saudade que sentia.
Foi no apartamento da mãe, dona Clarice, na Boa Vista, que começou a entender o que havia mudado. Recorda com uma riqueza de detalhes proustiana a cena da mãe chegando com um simples e primeiro cafezinho.
“Você não pode imaginar o que foi aquilo. Eu parecia Alice no País das Maravilhas”.
Tudo porque o café veio numa delicada xícara, pires, colherinha, açucareiro. E feito pela mãe, claro.
Era o começo de um deslumbramento com as coisas mais simples, o aconchego da casa, o cotidiano.
Talvez tenha nascido, ali, sua visão de militância política de esquerda que permanece viva até hoje – de caminhar livre e com a olhar livre das “viseiras”.
Logo ao amanhecer, pela janela de casa, viu cenas impossíveis, de tão simples. O quintal de um vizinho, um varal, um sujeito passando numa bicicleta, uma rua. Saiu para dar uma volta e ficou arrebatado pela claridade do Recife. Caminhou durante doze horas, contemplando a claridade do mundo cá fora.
A vida recomeçava. Após a liberdade, os encontros lhe deram cinco filhos: Uyatan, Antônio, Guilherme, Lara e Matheus.
A identificação atual dele simples e reveladora:
“Sou plebeu, republicano, democrata-popular, cidadão de esquerda, socialista, pluralista e seguidor do Detran: sempre à esquerda, não ultrapasse pela direita”.
Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.