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Recife tem menos da metade das unidades de referência para Covid-19 em funcionamento

Raíssa Ebrahim / 17/04/2020

Plano Municipal de Contingência Covid-19 do Recife prevê 24 unidades de referência para sintomas respiratórios, mas só 10 estão funcionando para isso (crédito: Andréa Rego Barros/PCR)

O trabalho das equipes de saúde da família e a participação comunitária são peças fundamentais no enfrentamento ao novo coronavírus. Mas, além da complexidade natural para se adaptar a uma pandemia, a doença encontrou uma atenção primária desarticulada e fragilizada em muitos territórios do Recife.

O plano municipal de contingência da Covid-19 prevê 24 unidades de referência para centralizar atendimentos de sintomas respiratórios – são três em cada um dos distritos sanitários. Mas até agora, somente 10, ou seja, menos da metade, conseguiram se reorganizar e começar a funcionar exclusivamente com essa finalidade.

Segundo o plano, as Unidades de Saúde da Família devem manter suas equipes para não deixar sobretudo quem tem problemas crônicos desassistido. Para evitar a ida dos usuários aos postos e Upinhas, o teleatendimento foi reforçado juntamente com medidas como o adiamento das consultas de rotina e a possibilidade de ampliação da validade de receituários. Assim, quem tem sintomas respiratórios é encaminhado para as unidades de referência.

Reorganizar a rede que é porta de entrada do SUS, incluindo aí um novo rodízio de profissionais e questões de biossegurança, é uma missão bastante complexa. A estratégia da Prefeitura do Recife de centralizar territorialmente os atendimentos otimiza EPIs e recursos materiais e humanos, além de expor menos os profissionais à contaminação.

Mas, na prática, o plano tem encontrado obstáculos que ajudam a explicar a dificuldade de implantação um mês após o início das medidas de isolamento. Médicos da atenção primária com quem a Marco Zero Conteúdo conversou relataram dificuldades de estrutura e de comunicação.

A articulação territorial também é outro elemento para entender a importância da atenção primária para enfrentar uma pandemia. A reportagem procurou a Secretaria Municipal de Saúde na quarta-feira (14) para ouvir a gestão, mas não conseguiu resposta até o fechamento da reportagem.

“A decisão de centralizar foi rápida, mas na prática vem acontecendo com dificuldades”, afirma Letícia Sawada, médica de uma unidade de saúde da família no distrito VIII, que, dividida em microáreas abrange, na sua totalidade, Cohab, Ibura e Jordão.

“A reestruturação não é uma tarefa fácil, mas sinto falta de uma organização. As coisas mudam todo dia, os protocolos são atualizados, mas a burocracia não permite que a gente tenha acesso a essa informação na ponta de uma forma mais ágil. Essa agilidade da comunicação tem sido difícil”, detalha.

Outro problema tem sido a montagem das escalas de rodízio para os turnos de 6 horas nas unidades de referência. A rede é grande e muitos profissionais já estão afastados por sintomas da Covid-19 ou aguardando testes e isso tende a piorar nas próximas semanas, já que a contaminação está em aceleração.

No estado, 407 trabalhadores da saúde estão em isolamento domiciliar, 45 em leitos de enfermaria e 4 internados em UTI.

Além disso, são muitos profissionais para serem capacitados e sensibilizados, o que exige uma articulação forte de ponta a ponta. É algo novo também para a atenção primária, com diversas normas de biossegurança.

Cada distrito sanitário tem uma administração quase independente e uma forma de organização, mas que depende de comandos que partem da gestão central. Então não está sendo fácil construir os fluxos e sensibilizar todos os trabalhadores.

“Mas se as unidades de referência tivessem sido abertas todas ao mesmo tempo, teria sido um desastre. Imagine organizar e montar escalas de uma rede de profissionais de um dia para o outro”, pondera Letícia. A população também ainda não está bem informada e continua indo às unidades que agora são de referência com outras demandas de saúde.

“Há muitas unidades onde a infraestrutura não consegue dar conta do protocolo e por isso estão sendo feitas adaptações”, acrescenta um médico do distrito sanitário IV, dividido em microáreas e que abrange, na sua totalidade, Caxangá, Cidade Universitária, Cordeiro, Engenho do Meio, Ilha do Retiro, Iputinga, Madalena, Prado, Torre, Torrões, Várzea e Zumbi.

Ele relata que a operação do plano é desigual e há muito choque de informação. “Parece que existe uma dificuldade em capilarizar as coisas, a informação para no meio do caminho. Não sei se estão faltando pernas, mas está faltando assertividade”, complementa.

As preocupações médicas

O médico também menciona que não existe equipe de vigilância para verificar se as pessoas realmente estão cumprindo a quarentena. Quem tem sintomas leves e moderados é encaminhado para casa, já que não há testes disponíveis para essas classificações.

“A negligência de familiares e pacientes no cumprimento da quarentena é preocupante. Nas comunidades, as casas não têm cômodos suficientes, então temos orientado isolar toda a família. Não existindo uma vigilância, nós ligamos para acompanhar os casos clinicamente”.

O médico ainda coloca outra preocupação: o deslocamento de pacientes, que geralmente acontece a pé, de bicicleta ou por transporte público. No distrito em que ele atua, um paciente pode ter que se deslocar em torno de oito quilômetros para chegar à unidade de referência. “Por conta da mobilidade, talvez seja melhor algumas pessoas recorrem à UPA da Caxangá”.

Roberta Soares Nascimento, médica do Distrito Sanitário IV, atende as áreas do Bongi e Novo Prado e se preocupa com a questão territorial e o histórico dos pacientes. “Eu conheço todos os pacientes da Unidade de Saúde da Família em que eu trabalho. E agora tenho visto pacientes de outras áreas indo à unidade. Nós não participamos da discussão para saber como seria isso”, pondera.

“Lamento ter que dizer para sintomáticos leves e moderados terem que voltar para casa sem testes, onde há idosos, crianças e gestantes, sabendo que não é possível fazer o isolamento dentro das casas e becos das comunidades. Por isso seria muito importante conseguirmos identificar os casos através de testagem rápida”, opina Roberta, que faz parte de uma equipe de saúde da família responsável por cerca de quatro mil pessoas.

“Mas tudo é novo, pode ser que haja acomodação daqui para frente. Estamos vivendo um dia de cada vez e aprendendo”, coloca.

Confira as 10 unidades de referência em funcionamento:

Distrito Sanitário I – Waldemar de Oliveira
DS II – UCIS Guilherme Abath
DS III – Mário Ramos
DS IV – José Dustan
DS V – Romero Marques e Fernandes Figueira
DS VI – Djair Brindeiro e Romildo Gomes
DS VII – Iná Rosa Borges
DS VIII – Upinha Rio da Prata

Mais coordenação e orientação nas comunidades

Falta de organização comunitária dificulta o controle do isolamento (crédito: Tony Winston/Agência Brasília)

“O papel do distrito sanitário na atual gestão é burocrático e administrativo, há pouco diálogo com os profissionais de saúde e os territórios. É uma gestão centralizadora e distante. A relação com as trabalhadoras e os trabalhadores é precarizada, distante do secretário e do corpo decisório da secretaria”, avalia Rodrigo Cariri, médico, doutorando na Fiocruz-PE, professor de saúde da família na UFPE e atualmente à disposição do mandato do vereador Ivan Moraes (Psol).

Na opinião de Cariri, a falta de organização comunitária dificulta o controle do isolamento: “Não é um drone, um carro de som ou um aplicativo de celular que vai colocar as pessoas dos becos, das vielas e das praças para dentro de casa”.

Ele defende que é preciso mais coordenação e orientação nas comunidades e lembra que a atenção primária envolve não só atendimento, mas educação em saúde e articulação comunitária. “A gestão Geraldo Julio, nestes oito anos, optou por um modelo de organização que privilegia o atendimento médico em detrimento do trabalho comunitário”.

Os Agentes Comunitários de Saúde (ACSs), que já estão nas comunidades porque é lá que eles moram e poderiam estar desempenhando um papel mais ativo, vêm sendo deslocados para funções auxiliares, de teleatendimento e de desinfecção de ambiente, segundo relatos ouvidos pela reportagem.

No segundo semestre do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acentuou essa precarização da mobilização comunitária ao publicar portaria mobilizando os agentes comunitários de saúde para fazer o recadastramento populacional para o atendimento, deslocando-os de suas funções originais, alterando o modelo de repasse de recursos para a atenção primária e comprometendo o princípio da universalidade do sistema.

“A perspectiva de investimento na atenção básica também foi mudando. Recife tinha um plano de começar pelas áreas mais vulneráveis e expandir até atender 100% da população. Quando o crescimento chegou a cerca de 70%, a prefeitura passou a substituir PSF por Upinhas, que têm uma ótima estrutura. Mas o mais importante na saúde da família é estar perto da casa das pessoas. O acesso deveria ser o mais importante”, avalia o professor.

“É um princípio gerencialista, empresarial, com uma visão administrativa que não enxerga trabalhadores e trabalhadoras e territórios”, complementa.

A importância da atenção primária

“Uma atenção primária forte é fundamental para dar respostas à epidemia”, diz Bernadete Perez, médica sanitarista, professora do Centro de Ciências Médicas da UFPE e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Mas sem testes e EPIs o controle fica ainda mais difícil.

Ela relembra que, na época da zika, as mesmas críticas foram feitas: incapacidade e dificuldade técnicas, distanciamento dos territórios e uma vigilância distante da rede. “Teve criança que foi descoberta com zika através da busca ativa dos pesquisadores”.

Segundo a especialista, quando se faz bem o monitoramento e o controle, se diminuiu inclusive a necessidade de leitos de enfermaria e UTI. Uma atenção básica forte consegue evitar e monitorar problemas graves, assim como populações mais vulneráveis e de risco. “É uma cascata para o sistema inteiro”, resume Bernadete, que integra a Rede Solidária em Defesa da Vida – PE, um grupo multidisciplinar montado no estado para avaliar e ajudar nas respostas estratégicas à Covid-19.

Outro ponto importante destacado pela professora é o vínculo terapêutico. “Se sabe nome e sobrenome, e não números. Se conhece a vulnerabilidade social e a dificuldade de se fazer o isolamento de uma família que tem algum desequilíbrio sob um olhar social, subjetivo e biológico. Assim se consegue fazer uma orientação familiar e comunitária, atributos da atenção primária”.

Ela avalia que, se os municípios conseguissem ter feito isso precocemente teria se conseguido uma medida de isolamento social mais potente para conseguir convencer e mostrar à população a força dessa medida, o que ela chama de “isolamento certeiro”.

“É preciso fortalecer e valorizar estratégias que dão conta de uma situação gravíssima numa rede que não é equânime no Brasil inteiro”, pondera Bernadete.

No início da pandemia, o recém-demitido ministro Luiz Henrique Mandetta enfatizou a importância do trabalho da atenção primária e dos agentes comunitários de saúde como linha de frente. Chegou a chamá-los de “infantaria”.

“Mas tem que ter proteção. Colocar essas equipes na linha de frente sem EPIs é vulnerabilizar as pessoas, que podem ser vítimas e transmissoras ao mesmo tempo”, afirma Bernadette sobre as dificuldades em todo o país.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com