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Um vislumbre de quem manda de verdade no Recife

Inácio França / 24/09/2015

Uma decisão judicial emitida em 2006 serve de abertura para a série de matérias que, a partir de agora, o Marco Zero Conteúdo começa a publicar sobre o poder das empreiteiras no planejamento urbano em Recife. Os textos são ora assinados por este que vos escreve ora por Luiz Carlos Pinto.

Depois de ler a primeira frase deste texto, o leitor atento deve estar se perguntando: publicar um documento escrito há nove anos como se fosse novidade não contraria as regras do jornalismo?

Sim, se jornalismo for apenas o relato dos fatos recentes, com tratamento efêmero e prazo de validade próximo a zero. Não, se o Jornalismo estabelece, com ajuda de diversas fontes, documentos, análise e recursos tecnológicos a relação entre certos acontecimentos e a forma pela qual o poder é exercido. Ficamos com a segunda opção.

A novidade não é o documento, mas a sua simples publicação. O conteúdo do despacho do juiz federal Hélio Sílvio Ourem Campos é quase uma lenda urbana na capital de Pernambuco. Militantes de movimentos sociais, advogados, assessores de políticos e até alguns jornalistas já ouviram falar de sua existência e, mesmo que genericamente, de parte do seu conteúdo.

A sentença foi redigida quando o debate em torno da construção das torres gêmeas no Cais de Santa Rita inflamava a cidade. Há nove anos, portanto, era notícia, e notícia quente, capaz de seduzir os praticantes do tal jornalismo efêmero. Mesmo assim, ninguém a publicou. Ela nunca esteve protegida por segredo de justiça. Durante esse tempo, o texto estava a alcance de qualquer um, na página da Justiça Federal na Internet.

Quase uma década depois, a medida cautelar inominada 0012548-03.2006.4.05.8300, classe 148, deixou de ser notícia para se tornar um valioso documento que atesta o modo como os empresários da construção civil exercem o poder sobre as autoridades e dá a exata medida de até onde vai sua disposição.

Ao redigir seu despacho o juiz Ourem enumerou cada informação. A sequência que vai do item 21 ao 34 talvez ajude a explicar tanto o silêncio da mídia quanto a aura de lenda adquirida pela sentença. Em 13 parágrafos, o magistrado relata, com riqueza de detalhes, como o empresário Gustavo Dubeux, sócio da Moura Dubeux, uma das maiores construtoras do Nordeste, o pressionou e o ameaçou, como no item 31:

“A resposta que tive foi a de que ele possuía muitos meios, pois era uma pessoa de forte influência política em vários setores da sociedade pernambucana, e que me faria sofrer o peso das suas relações sociais.”

Antes de continuar é necessário explicar em qual contexto o juiz Ourem proferiu sua sentença.

Um juiz sob suspeição

Corria o ano de 2006 e a construtora havia iniciado as obras dos edifícios Pier Duarte Coelho e Pier Maurício de Nassau. O Ministério Público Federal já havia ajuizado uma ação cautelar para impedir que as obras continuassem.

O principal argumento era de que a altura dos prédios iria interferir no patrimônio histórico tombado. As desventuras jurídicas são bastante conhecidas: os prédios foram construídos e estão em pé graças a uma série vitórias e derrotas em diferentes instâncias da Justiça. Contudo, não é isso que nos interessa aqui.

No curso daquele processo, o juiz Ourem já havia tomado decisões desfavoráveis à Moura Dubeux. A construtora tentou trocar de juiz: usou um recurso chamado “exceção de suspeição”, acusando o juiz de ser suspeito para continuar a julgar o caso. A empresa não conseguiu remover o magistrado, que decidiu marcar sua posição nos próprios autos do processo. Talvez sua intenção fosse a de deixar sua versão dos fatos registrada para a posteridade. Vamos ajudá-lo tornando a história pública.

Os primeiros parágrafos são destinados a recordar decisões anteriores favoráveis a Moura Dubeux em casos rotineiros, como a emissão de uma certidão negativa de débito para a empresa. Percebe-se a ironia do juiz:

“Como se vê, neste momento, quando de decisão favorável, em nada se lançou mão da suspeita”.

Mais adiante, repete, sublinhado e em negrito:

“É de se insistir: não se interpôs qualquer exceção até a sentença que lhe foi contrária, quando se sabe que a petição fundamentada e devidamente instruída deveria ser apresentada na primeira oportunidade em que lhe coubesse falar nos autos.”

O “inimigo capital”

A partir daí, o magistrado se pergunta por que os advogados da construtora – entre eles, Tiago Norões, que depois veio a ser procurador-geral do estado no governo do seu primo Eduardo Campos – usaram a expressão “inimigo capital” para se referir a ele nas alegações apresentadas. A expressão, por mais forte que pareça, é um termo técnico que designa um magistrado que tem razões para não gostar de uma das partes.

Além de intrigado, isto o deixou preocupado:

“…deixando-me atento quanto à minha segurança e a dos meus familiares”, em negrito e sublinhado como no trecho anterior, porém com o acréscimo das letras garrafais, em fonte tamanho 16.

É possível que ele tenha exagerado, mas pelo jeito sua intenção era chamar atenção para o que considerou uma ameaça sutil.

Na época, Hélio Ourem acreditava que a explicação poderia ser encontrada numa conversa banal que havia tido com um, marido de outra juíza, com quem costumava encontrar-se enquanto praticava esportes. O homem queria saber qual era sua opinião sobre a procuradora do MPF que ajuizou a ação contra as torres gêmeas e sobre o juiz que na ocasião o substituía na 6ª Vara da Justiça Federal e recebeu a ação (Ourem era o titular, mas estava “emprestado” ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região):

“Sem conhecer o Processo, mas conhecendo ambos os colegas, fiz o que o bom senso me indicava. Elogiei firmemente os mesmos, (…) até porque considero-os pessoas extremamente competentes”.

O que ele não sabia era que o marido da juíza era diretor da Moura Dubeux.

“Provavelmente, daí intuiu-se que a minha opinião já estava formada, e não iria modificá-la”.

Estranhos telefonemas

A partir do parágrafo 21, as coisas esquentam. Deixemos o próprio juiz Ourem contar o que houve:

“Ocorreu que, para a minha mais absoluta surpresa, no dia 04 de outubro de 2005, ligou-me o Sr. GUSTAVO JOSÉ MOURA DUBEUX (sic), ou alguém que se fazia passar por ele. Não tive certeza no momento, pois jamais mantive qualquer contato com o mesmo”.

“A ligação foi para o meu telefone funcional (9973.XXXX), aparecendo, na tela, chamada ‘não identificada’.”
“Quando verifiquei o fato real, deixei que algumas pessoas escutassem toda a conversa.”

“A ligação realmente partiu do número 558188037788, proveniente da OI. Esta Empresa telefônica, após três Ofícios deste Juízo, confirmou que a procedência da ligação era da Empresa MOURA DUBEUX ENGENHARIA LTDA (sic)”.

“No segundo telefonema, desliguei logo que percebi de quem se tratava e das suas reais intenções: tornar-me suspeito.”

“No primeiro, contudo, em face do caráter inédito da situação, a duração do telefonema chegou a quase 18 (dezoito) minutos. Tudo foi escutado pelas pessoas que estavam ao meu redor, pois seguramente nada tinha a esconder.“

“Insistia o Sr. GUSTAVO JOSÉ MOURA DUBEUX que eu não desligasse.“

“A minha primeira atitude foi a de dizer-lhe que se dirigisse, conjuntamente com o seu advogado, até o meu Gabinete, pois, sem nenhum problema, o atenderia. Insisti bastante nisto, inclusive em atenção à referida juíza desta Seção Judiciária. Eles não compareceram.”

Nesse momento, o empresário teria, com a delicadeza de um hipopótamo, feito aquelas menções ao “peso de suas relações pessoais.”

“Foi aí que lhe deixei claro, sempre de um modo bastante firme, que não esperasse ele que provocaria em mim nenhum temor reverencial, pois trato todos como iguais, desde o servidor da limpeza, desde o trabalhador rural até o grande político ou empresário.”

“Neste estágio da conversa, afirmava, nervosamente e com tom agressivo, que exigia que me considerasse suspeito, e que não mais julgasse qualquer causa da sua Empresa, pois concluía que eu não gostava de empresários. Raciocínio sem nenhuma base em fatos concretos”.

“Percebi que pretendia forçar a minha suspeição, e diante do descontrole com que falava, decidi novamente insistir sobre quem lhe havia dado o meu telefone funcional. Foi aí que se referiu ao nome de um dos seus diretores, exatamente aquele esposo de uma juíza desta Seção”.

“Concluí que já era o momento de desligar.”

Depois disso, Hélio Ourem tratou de se proteger institucionalmente. Em Brasília, procurou o coordenador-geral da Justiça Federal, Ari Pargendler, e comunicou o que tinha ocorrido. Fez o mesmo diante do então presidente do TRF Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti. Ambos disseram que ele não deveria declarar-se suspeito.
2015: um juiz silencioso

É lógico que o juiz e a empreiteira foram procurados para falar sobre o que aconteceu. Depois de tanto tempo, seria interessante saber quais os desdobramentos do fato e se algo mudou na visão de cada um.

Hélio Ourem não falou, mas pela assessoria de comunicação social da Justiça Federal avisou que “as informações estão todas na sentença”. A equipe do Marco Zero interpretou isso como um “publique-se”.

2015: a posição da construtora Moura Dubeux

Logo abaixo estão minhas perguntas e a íntegra das respostas da empresa, repassadas pelo seu assessor de imprensa.

A pressão relatada pelo juiz Ourém aconteceu daquela forma? Ou seja, o conteúdo da sentença é verdadeiro e qual a versão do senhor Gustavo Dubeux para aquele episódio?
Não há razão para reabrirmos discussão sobre assunto já superado, pois as ações que versam sobre o empreendimento Píer Duarte Coelho e Mauricio de Nassau, onde a Moura Dubeux foi parte vencedora, já se encontram encerradas, devidamente julgadas em seu mérito e, quando não, foram extintas ou arquivadas por perda do objeto.

Qual Recife a Moura Dubeux quer ajudar a construir? Quais as futuras áreas e bairros de interesse da empresa?
A Moura Dubeux tem como princípio básico, ao conceber seus empreendimentos, atender às expectativas de seus clientes e o entorno, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida do Recifense, sempre levando em consideração o que a sociedade anseia.

O que significa a expressão “cidade desenvolvida” para os empresários que fazem a Moura Dubeux?
Cidade desenvolvida é aquela que, cada vez mais, oferece serviços e equipamentos públicos visando o bem-estar da sociedade como um todo. Portanto, cada um de nossos empreendimentos busca contribuir com esta visão, com este conceito, através de ações e investimentos compartilhados com o município e seguindo as leis vigentes de uso e ocupação do solo.

Veja a íntegra do despacho do juiz:

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.