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Crédito: captura de tela Youtube/CMR
O Brasil registra um estupro a cada oito minutos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Isso significa que, enquanto a Câmara dos Vereadores do Recife fazia a sessão desta terça-feira, 21 de setembro, que durante quase quatro horas debateu o Projeto de Lei Ordinário (PLO) nº 125/2020, para criação da Semana Municipal Contra o Aborto, provavelmente 30 mulheres foram vítimas de estupro no país. A cada aborto legal realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), 100 brasileiras passam por procedimentos malsucedidos.
Mesmo diante desses dados, a vereadora Missionária Michele Collins (PP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, propôs e insistiu em defender um projeto que, na prática, estimula a criminalização das mulheres, sobretudo as pretas e pobres, maiores vítimas de abortos realizados de forma inadequada, insegura e sem qualquer assistência médica, psicológica ou espiritual.
Graças a uma forte articulação de parte da bancada progressista nos últimos dias, numa votação de 20 contra nove (houve nove ausências), a matéria foi rejeitada pela Câmara, que vinha se mostrando bastante conservadora em votações anteriores. O clima esquentou durante a sessão virtual, com a presença de mais de 130 pessoas no chat. A vereadora Michele Collins (PP) chegou a chamar as mulheres que abortam de “assassinas”.
Ela foi uma das parlamentares que protestaram na porta do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em 2020, para tentar impedir o procedimento abortivo numa criança de 10 anos que engravidou vítima de estupros sucessivos que sofria do próprio tio. A menina precisou se esconder na mala de um carro para driblar a violência dos atos.
O debate foi pesado entre os parlamentares da esquerda Dani Portela (Psol), Liana Cirne (PT), Cida Pedrosa (PCdoB) e Ivan Moraes (Psol) e parte da bancada conservadora evangélica, com destaque para Fred Ferreira (PSC), Felipe Alecrim (PSC) e Renato Antunes (PSC).
“Tivemos uma bela vitória hoje”, disse Cida Pedrosa (PCdoB), uma das principais articuladoras contra o projeto. “Houve uma sensibilização para construir um consenso para as nossas bandeiras. Um consenso possível a cada batalha, já que não temos consensos globais”, comentou após a audiência.
“Se a bancada conservadora tem medo da palavra orientação sexual, então a gente muda o nome para bem viver. Por que não se propõe então a Semana de Construção pelo Bem viver?”, provoca. “E é impossível bem viver engravidando aos 12 anos”, reforça a vereadora. Cida insistiu, a todo tempo, que o que estava em votação não era ser contra ou a favor do aborto, mas a vida das mulheres pretas e pobres e o combate a algo que, na verdade, já é proibido por lei.
“Isso é a tribuna de uma casa legislativa, não é um púlpito de uma igreja religiosa”, soltou a vereadora Dani Portela (Psol), para quem um projeto como esse “é um estimulo à criminalização do aborto”. Ela lembrou que, somente em 2019, chegamos a um total de 66.123 casos de estupro e estupro de vulnerável registrados em delegacias de polícia. Desses casos, 85,7% eram mulheres e 57,9% dessas vítimas tinham no máximo 13 anos de idade, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
A vereadora Liana Cirne (PT), por sua vez, chamou a atenção para o fato de o projeto de Michele, na casa desde o ano passado, sequer excepcionava o aborto legal previsto em lei desde 1940, em casos de estupro ou que colocam a vida da gestante em risco. “São casos como o do Cisam que serão reproduzidos (em caso de aprovação)”, colocou. Liana lembrou a pesquisa nacional do aborto de 2010, publicada em 2014, que mostra que uma em cada cinco mulheres abortam, inclusive as católicas e evangélicas, num país que não tem renda básica nem política habitacional.
“Ficamos imaginando o tipo utópico de mulher que aborta e deixamos de olhar para a realidade. É Ingriane que aborta e morre com um talo de mamona no útero sem pedir auxílio espiritual porque sabe como vai ser tratada”, ponderou, em memória da jovem gestante de quatro meses que veio a óbito por conta de um procedimento feito em casa.
O vereador Ivan Moraes (Psol) também se posicionou: “Tenho certeza de que se homens pudessem engravidar, o aborto já estaria legalizado para todo mundo no Brasil há bastante tempo”. “Gravidez a pulso é tortura”, bradou. Ele lembrou que o PLO não passou nas comissões de Mulheres nem Direitos Humanos. Passou e foi aprovado apenas na de Constituição, Legislação e Justiça.
Do outro lado, estava parte da bancada fundamentalista. Os argumentos foram sentido de que “ser a favor do aborto é ser contra a vida”. Michele Collins (PP) tentou defender que o projeto não era contra as mulheres, mas uma proposta de educação e conscientização sobre o tema do aborto.
“O projeto é em defesa da vida sim, em defesa de pessoas, de crianças inocentes que estão no ventre da sua mãe e que morrem por nada. Morrem simplesmente porque mulher não quer ter”, defendeu. E criticou os movimentos sociais feministas: “Infelizmente, quando tem esses movimentos feministas, as jovens que vão são aquelas que gostam e fazem aborto. E fazem aborto por nada, parece que vivem trabalhando para isso, o trabalho delas é esse, ir contra”, afirmou.
Michele colocou à mesa a lei da adoção dizendo que “É muito fácil, tem a criança e dá a criança, mas não mata a criança. Não seja uma assassina, mulher”, disse a vereadora.
Na sessão, também apareceram frases como “O que me incomoda é saber que muitas crianças não tiveram a oportunidade de nascer”, do vereador Renato Antunes (PSC); “Crianças brutalmente assassinadas no útero” e “O maior destruidor do amor e da paz é o aborto”, do parlamenta Felipe Alecrim (PSC); e “falar em aborto é falar em morte, destruição de família e destruição da sociedade”, do vereador Fred Ferreira (PSC).
* O vereador Osmar Ricardo está de licença médica por causa de problemas cardíacos.
Atualizado às 08h07min de 22 de setembro
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com