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Crédito: João Zinclar
A boiada passa silenciosamente, mesmo quando é tangida às pressas pelos salões do Congresso Nacional. Neste mês, o Senado aprovou a Medida Provisória 998, que dita diversas mudanças relevantes no setor elétrico, com destaque para abertura à privatização e a possibilidade da iniciativa privada investir em usinas nucleares, ao mesmo tempo em que freia os incentivos às energias renováveis.
A exploração nuclear é de competência exclusiva da União, através da Eletronuclear, empresa ligada à Eletrobras. A MP, que aguarda sanção presidencial até 1º de março, fala expressamente sobre a conclusão da usina Angra 3, no Rio de Janeiro – paralisada desde 2015 e com denúncias de corrupção e problemas técnicos -, abrindo a possibilidade de passar o controle e a gestão da unidade para empresas privadas.
Nesta quinta-feira (25), a Eletronuclear publicou, no Diário Oficial da União (DOU), o edital de contratação da empresa que retomará a obra civil de Angra 3 e realizará parte da montagem eletromecânica. A contratação da empreiteira que dará sequência à obra está prevista para 2022, com entrada em operação da usina para 2026.
Mas foi por causa das alterações nas normas legais e na organização institucional que rege o setor que ela reacendeu o alerta da possibilidade de novos investimentos, para além de Angra. O debate esquentou novamente, sobretudo no Nordeste, levando o movimento antinuclear, formado por acadêmicos, movimentos sociais e comunidades tradicionais, a reforçar suas articulações.
O Plano Nacional de Energia (PNE) 2050 prevê a construção de seis usinas no país, a um custo de US$ 30 bilhões. A grande aposta nessas “chaleiras atômicas”, um projeto com seis reatores e capacidade instalada equivalente a metade de Belo Monte, tem as margens do Rio São Francisco como principal foco. Mais especificamente o sertão de Itaparica, no município de Itacuruba, a 480 quilômetros do Recife.
O que deveria fazer barulho foi aprovado sem alardes às vésperas de caducar, já na primeira sessão deliberativa do Senado em 2021, após a eleição do novo presidente da casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e a retomada dos trabalhos legislativos.
Em resumo, o texto da MP autoriza e cria incentivos para que o setor privado invista na construção e operação de reatores. A novidade é mais um elemento do pano de fundo do almejado reinvestimento nesse tipo de energia pelo governo Bolsonaro, enquanto boa parte do mundo aposta na descontinuidade de usinas e investe na geração através do sol, dos ventos e de biomassas, como está acontecendo na Alemanha, por exemplo.
Em conversa com a Marco Zero Conteúdo, o físico Heitor Scalambrini, professor aposentado de engenharia elétrica do Centro de Tecnologia e Geociências (CTG) da UFPE, explica que as modificações legalizam a situação brasileira frente a acordos internacionais. “O Brasil está, há quase 50 anos, ilegal em relação a acordos internacionais firmados pelo próprio país”, detalha. Irã e Coreia do Norte também não cumprem o que é determinado internacionalmente por esses acordos.
Uma das principais mudanças é a criação de uma agência reguladora, tirando essa função do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão de assessoramento da presidência para formulação de políticas nacionais e diretrizes energéticas. Até então, contraditoriamente, o conselho tinha uma dupla função antagônica, pois tanto tinha a obrigação de fiscalizar o uso da energia, funcionando a grosso modo como órgão de regulação, como também aprovava e estimulava a energia nuclear.
O texto também abre espaço, segundo Scalambrini, para que o CNPE dite os preços da energia. Competirá ao conselho a exploração da usina de Angra 3 e o rateio de seus custos entre os consumidores, que pode inclusive ser feito por meio de adicional tarifário.
“Do ponto de vista do governo, esses eram entraves ao desenvolvimento. Por isso a medida tem como foco principal beneficiar as usinas nucleares”, avalia Scalambrini. Para o professor, a MP 998 é inconstitucional por ir de encontro a um ponto básico da constituição, que coloca a questão nuclear nas mãos somente do governo federal.
O texto aprovado no Senado também reorganiza, em termos societários, as estatais do setor nuclear, a Nuclebrás Equipamentos Pesados S/A (Nuclep) e Indústrias Nucleares do Brasil S/A (INB), determinando a transferência para a União de todas as ações, inclusive as que estão nas mãos da iniciativa privada. A Nuclep atua no desenvolvimento, na fabricação e na comercialização de equipamentos pesados para o setor nuclear.
As duas estatais, que hoje atuam como sociedades de economia mista, serão transformadas em empresas públicas vinculadas ao Ministério de Minas e Energia.
O lobby da ala militar com seus interesses estratégicos e geopolíticos e em favor das empresas privadas atua para estruturar uma cadeia que vai da exploração de urânio à geração e comercialização de energia nuclear.
O Brasil tem hoje duas usinas nucleares (Angra 1 e 2) em atividade. No ano passado, foram registrados problemas que acionaram o desligamento automático de ambas as unidades, que precisam ser reparadas, incluindo instalações que sofreram corrosão e podem, como consequência, expor material radioativo.
O custo estimado para conclusão de Angra 3 é de R$ 14 bilhões, além dos R$ 12 bilhões já investidos. A unidade começou a ser erguida na década de 1980 e ainda é preciso tocar cerca de 35% das obras necessárias para a conclusão.
Na visão de Celio Bermann, doutor em engenharia mecânica pela Unicamp e professor associado no Instituto de Energia e Ambiente da USP, o Brasil não precisa de energia nuclear. Além de cara, ela é potencialmente perigosa. O custo final da energia nuclear pode chegar a ser de duas a três vezes mais caro quando comparado às hidrelétricas, solares e eólicas.
O pesquisador reforça que é mito a ideia de que trata-se de uma energia limpa, mesmo que ela não emita gases poluentes ou rejeitos visíveis. Acidentes como Chernobyl (1986), Fukushima (2011) são a prova das consequências caso alguma estrutura falhe.
Mas nem é preciso chegar a esse ponto. A própria instalação da planta já é, potencialmente, geradora de violações socioambientais e impactos aos ecossistemas e nos povos originários e tradicionais, além do lixo radioativo e de outras consequências perigosas.
Na região de Itacuruba, localidade mais visada para o plano nacional de investimentos, vivem seis povos indígenas (Pankara Serrote dos Campos, Pajeú de Itacuruba, Tuxá Campos, Tuxi, Tuxá de Inajá e Tuxá de Roledas) e 11 comunidades quilombolas (São Gonçalo, Tiririca, Ingazeira, Negros do Pajeú, Filhos do Pajeú, Raízes do Pajeú, Negros de Gilu, Poços dos Cavalos, Borda do Lago, Enjeitado e Poço Dantas).
São populações e territórios que já carregam marcas e traumas da inundação de parte do município, em 1988, para construção da barragem de Itaparica e instalação da usina hidrelétrica Luiz Gonzaga.
Além da reação desses povos, parte significativa da Igreja Católica tem se posicionado contra o empreendimento nuclear. Em 2019, mais de 100 organizações assinaram uma carta contra a implantação da usina em Itacuruba, cujo lobby envolve a promessa de geração de empregos, desenvolvimento local e equipamentos municipais.
Todas essas novidades se juntam, não por coincidência, à recente retomada, após anos parada, das atividades na mina de urânio de Caetité, no Sertão da Bahia, sob responsabilidade das Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Além dela, existe um consórcio entre a INB e uma empresa privada da Noruega para também produzir urânio no interior do Ceará, em Santa Quitéria.
Outro aspecto relevante é que, no final do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o trecho da constituição de Sergipe, outro estado cotado para receber investimentos nucleares, que vetava usinas desse tipo. Para a maioria do tribunal, a União é quem deve legislar sobre atividades nucleares.
O professor Bermann também acredita que, apesar da MP 998 não estar diretamente relacionada a outros investimentos fora de Angra, ela acaba repercutindo na situação de estados como Pernambuco.
Em termos de disputas jurídicas, ele lembra que o estado está vedado pela constituição local a receber empreendimentos nucleares. “Fica proibida a instalação de usinas nucleares no território do Estado de Pernambuco enquanto não se esgotar toda a capacidade de produzir energia hidrelétrica e oriunda de outras fontes”, diz a lei.
Na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), há uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), a nº 09/2019, em discussão para derrubar a legislação. De autoria do deputado Alberto Feitosa (Solidariedade), a PEC ainda aguarda para ser analisada pela Comissão de Constituição, Legislação e Justiça.
Bermann também cita que, mesmo a constituição federal não conferindo a estados e municípios a possibilidade de legislar sobre energia e água, esses entes podem legislar sobre riscos ambientais de projetos como esses. “Essa possibilidade me parece fundamental para se manter afastado o risco de um projeto nuclear em função de um risco ambiental, tanto para populações como para o meio ambiente”, defende.
Na avaliação do especialista, mesmo havendo um contexto político adverso, é necessário brigar sob o amparo nas leis que envolvem o amparo à sociedade e ao meio ambiente.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com