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Deputados da Alepe não vão precisar prestar contas dos gastos com auxílios moradia, saúde e alimentação

Raíssa Ebrahim / 24/01/2023

Crédito: Divulgação Alepe

Os deputados da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) não precisam prestar contas dos auxílios saúde, moradia e alimentação, aprovados, na semana passada em sessão plenária relâmpago, que durou 15 minutos e não teve qualquer debate. Somadas, as verbas chegam mensalmente a R$ 12.377,37 para cada um dos 49 parlamentares, mas esse valor já será reajustado em 1º de abril e passará para R$ 13.120,02, com um custo mensal para a Casa de mais de R$ 642 mil.

Os três Projetos de Resolução aprovados (3844, 3845 e 3846), um para cada auxílio, estabelecem que os valores a serem recebidos correspondem a um percentual do salário dos deputados, que subirá, daqui a pouco mais de dois meses, dos atuais R$ 25.322,25 para R$ 29.469,99. O aumento escalonado dos próprios salários foi aprovado pelos parlamentares no dia 30 de dezembro. Com isso, o subsídio total de um parlamentar – somados salários e os três auxílios – vai saltar de R$ 41.777,77 para R$ 44.358,21.

Para os auxílios saúde e alimentação, que correspondem, cada um, a 10% do salário, basta que o deputado requeira o benefício e o dinheiro é instituído na folha de pagamento. Já para o auxílio-moradia, que corresponde a 22% do salário, é preciso atender a algumas condições. Mas, caso aprovado, o recurso, igualmente, já passa a constar na folha e não será preciso prestar qualquer conta nem à Alepe nem à sociedade dos gastos. Além disso, esses valores não sofrerão incidência de contribuição para a Seguridade Social nem serão configurados como rendimento tributável.

As regras para ter acesso ao auxílio-moradia são: estar no efetivo exercício das atribuições parlamentares; não ter imóvel funcional disponível; o cônjuge ou companheiro, ou qualquer pessoa que resida com o deputado, não pode ocupar imóvel funcional nem receber ajuda de custo para moradia ou auxílio-moradia; e o deputado ou o cônjuge ou companheiro não pode ser proprietário de imóvel residencial na Região Metropolitana do Recife.

Os três Projetos de Resolução não trazem qualquer menção à prestação de contas nem mecanismo de controle por parte da Casa para assegurar que os parlamentares vão realmente destinar os recursos para os devidos fins. Nos textos dos Projetos consta que eles não poderão sofrer qualquer tipo de desconto. O que significa que não haverá devolução da diferença do valor caso, por exemplo, o custo com aluguel e condomínio seja menor que os R$ 6.483,39 recebidos.

A Marco Zero solicitou, através da assessoria de imprensa, informações ao presidente da Mesa Diretora da Alepe, o deputado Eriberto Medeiros (PSB), mas não obteve um posicionamento oficial sobre a prestação de contas dos auxílios. A reportagem também demandou a assessoria de imprensa da Alepe, na última quinta (19), mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. Consultamos então a equipe de alguns gabinetes de deputados, que confirmaram não ser preciso prestação de contas e que não haverá mecanismo de controle sobre os gastos com os auxílios.

Durante a sessão do último dia 17, transmitida no canal do YouTube da Alepe, quando os auxílios foram aprovados, apenas os deputados João Paulo (PT), Jô Cavalcanti (Juntas/PSOL) e José Queiroz (PDT) pediram a palavra e declararam seus votos abertamente.

Enquanto Jô e João Paulo foram contrários às propostas alegando que os valores dos auxílios eram exagerados e incoerentes com a realidade da maioria da população pernambucana, José Queiroz disse que tinha inicialmente a intenção de votar contra os projetos, mas mudou de opinião depois de conversar com o deputado Tony Gel (PSB) — os dois têm base política em Caruaru, reduto da governadora de Pernambuco, Raquel Lyra (PSDB).

A criação dos auxílios por si só é constitucional, uma vez que os parlamentares podem se debruçar sobre os valores dos próprios salários dentro dos limites do orçamento público. A questão em debate é a falta de transparência.

Falta de transparência

A advogada eleitoralista e mestranda em direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Gisele Vicente Meneses do Vale afirma que a criação dos auxílios é inconstitucional pela falta da transparência dos gastos públicos e de um mecanismo de accountability na gestão pública — o termo pode ser traduzido como um controle, fiscalização, responsabilização ou ainda prestação de contas. Em outras palavras, accountability é uma medida de controle do uso do dinheiro público.

A Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), por meio do presidente Fernando Ribeiro Lins, já se manifestou contrária aos aumentos da Alepe, levando em consideração que os auxílios precisam ser considerados rendimentos tributáveis.

Gisele coloca que, diante do atual cenário de crise socioeconômica, a criação dos auxílios saúde, moradia e alimentação vai pesar no orçamento público. Ela lembra que, além do aumento dos próprios salários e da criação dos três auxílios, os deputados estaduais tentaram, em dezembro, com emendas do deputado Coronel Alberto Feitosa (PL), retirar recursos da pesquisa científica para turbinar o orçamento da Casa, igualmente em votação relâmpago, como mostrou a Marco Zero. Essa tentativa foi vetada pelo então governador Paulo Câmara (PSB).

Também no ano passado, antes da campanha eleitoral, foi aprovado um aumento de 34% das verbas de gabinete. Assim, cada um dos deputados tem direito a quase R$ 40 mil mensais para gastos exclusivamente da atividade parlamentar, isso sem contar com o salário dos assessores.

“Quando a gente coloca todos esses números na ponta do lápis e compara com o salário de um trabalhador comum, que precisa fazer as três refeições por dia, pagar passagem de ônibus e metrô, comprar remédios, pagar aluguel, dentre tantas outras necessidades básicas, fica claro que esses auxílios extrapolam o limite da razoabilidade e também da austeridade”, opina a advogada.

Para ela, um bom exemplo de mecanismo de controle é o Painel de Controle Cidadão do Congresso Nacional, que disponibiliza infográficos dos gastos de cada um dos deputados federais ou lideranças partidárias a partir de uma pesquisa por meio da cota para o exercício da atividade parlamentar. “O mesmo poderia acontecer aqui em Pernambuco para dar mais transparência aos gastos públicos promovidos pelos deputados estaduais na Alepe”, sugere.

Valores inadequados

A doutora em ciência política e pesquisadora bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Virgínia Rocha chama a atenção para a complexidade da temática, ao mesmo tempo em que considera a criação dos auxílios — e especialmente os valores — inadequados, assim como a falta de transparência.

“Quando falamos de agentes públicos, há uma discussão, na literatura especializada no tema, sobre a importância da remuneração para estimular um bom desempenho dos representantes e, ao mesmo tempo, evitar que tais agentes cometam irregularidades”, coloca. Por outro lado, a revolta da população, que tem sofrido com aumento de preços e redução do poder de compra, entre outros fatores, é completamente compreensível e é nesse sentido que considero a criação dos auxílios e, especialmente, o valor atribuído a eles, inadequados”, pondera Virgína.

E acrescenta: “Some-se a isso a ausência de transparência. Salvo melhor juízo, não vi nenhum estudo apresentado à população que justificasse a criação de tais auxílios e os valores que serão recebidos”.

A respeito das críticas de boa parte da população, a especialista comenta que elas “denotam um descolamento dos parlamentares com relação à realidade do seu próprio estado e das dificuldades vividas pelo povo pernambucano. É algo que causa desconforto, especialmente do ponto de vista moral”. Ela ressalta que isso “não é uma crítica à necessidade de remuneração adequada de agentes que detêm importante poder de tomada de decisão sobre políticas públicas”, mas compreende que “essa decisão precisa ser acompanhada de transparência e razoabilidade”.

A pesquisadora vê como “temeroso” o fato de os deputados não precisarem prestar contas desse dinheiro. “A transparência com relação aos gastos públicos é fator crucial para evitar desvios e outros tipos de irregularidades. Na minha visão, esse é um dos fatores mais preocupantes com relação aos auxílios”.

Sem recursos para cesta básica

Nos últimos dias, a aprovação das verbas gerou indignação em boa parte dos pernambucanos. No estado, 50% da população vivia com renda per capita abaixo de R$ 497 mensais em 2021, segundo o ranking no Mapa da Nova Pobreza, divulgado pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getliúo Vargas (FGV Social) em junho do ano passado. Esse valor não dá sequer para comprar uma cesta básica, que custava R$ 565 no Recife em dezembro de 2022, de acordo com o levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

A gerente de incidência política da Habitat Brasil, Raquel Ludermir, lembra que 1 milhão de pernambucanos não têm onde morar e essa situação se agravou no inverno de 2022, quando várias cidades da Região Metropolitana vivenciaram uma das maiores tragédias socioambientais da história do estado, que teve sérias repercussões para a moradia.

“Milhares de pessoas ficaram desabrigadas, tiveram suas casas interditadas pela Defesa Civil e, quando muito, receberam um auxílio emergencial de R$ 1,5 mil (numa só parcela) para reconstruir suas vidas do zero”, lembra. “A contradição está nos deputados receberem mensalmente um valor 4,5 vezes maior que o auxílio emergencial que famílias que perderam tudo nas chuvas receberam”, calcula.

Em nota, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong-PE) manifestou “indignação” pelo que considerou “descaso” da Alepe com a situação de pobreza, fome e abandono em que vive mais da metade das famílias pernambucanas enquanto os deputados aprovam auxílio saúde, moradia e alimentação em benefício próprio.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com