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Há muito o que comemorar, e ainda mais a resistir

Marco Zero Conteúdo / 03/11/2022

Crédito: Arnaldo Sette/MZ Conteúdo

Por Bia Pankararu

Nunca antes na história das eleições, desde a redemocratização do país, tivemos um segundo turno com uma diferença tão pequena entre os dois concorrentes a Presidência da República. Mesmo com a máquina pública a seu favor, Bolsonaro é o primeiro presidente que não consegue se reeleger e Lula o desbancou recebendo 2 milhões de votos a mais que o atual presidente, consolidando sua vitória com 50,90% dos votos válidos.

A vitória de Lula, por mais apertada que pareça à primeira vista, pode ser considerada uma vitória histórica e heroica. Dias antes da eleição, o diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Vasques, publicou em suas redes sociais mensagens de apoio e pedidos de votos para o atual presidente Bolsonaro. A parcialidade e o aparelhamento das polícias ficou escancarada quando no domingo, dia 30, operações nas rodovias federais e estaduais causaram transtornos, atrasos e uma onda de revolta naqueles que se deslocavam para exercer o direito máximo do voto. Foram registradas 549 operações da PRF em pleno domingo de eleição, sendo 272 destas no Nordeste. Ou seja, 49,50% da operações se concentraram na região que indicava levar a vitória ao ex-presidente Lula. Coincidência?

Mesmo com todas as artimanhas possíveis e imagináveis do bloco bolsonarista, com as Fake News, o orçamento secreto à disposição para compra de votos e a clara manobra da PFR em dificultar a locomoção dos eleitores, mais de 60 milhões de brasileiros compareceram às urnas para sacramentar a saída de Bolsonaro da cadeira presidencial. O primeiro grande passo foi dado para que possamos retornar ao caminho progressista e de civilidade democrática, mas ainda há muito o que ser feito para derrotarmos de vez os ideais bolsonaristas que flertam com o fascismo, o fundamentalismo, a teocracia e o autoritarismo diante da classe trabalhadora e menos favorecida do país.

Lula irá assumir o governo daqui dois meses, mas já estamos de volta ao rol político mundial, retomando o respeito e a credibilidade que Bolsonaro jogou na lata de lixo da diplomacia. Dezenas de chefes de Estado comemoraram e cumprimentaram nosso mais novo presidente eleito. Os investidores externos já sinalizam interesse em reforçar os negócios por aqui e esse sinal se deu com a queda do dólar e a valorização do real um dia após a eleição. As pautas ambientais e climáticas aguardam ansiosas pela participação do governo Lula e temos tudo para sermos protagonistas na defesa do meio ambiente do planeta Terra.

Os povos indígenas conseguem respirar um pouco mais aliviados. Depois de segurar o fôlego por quase quatro anos sofrendo ataques diários, invasões e perseguições em vários territórios ancestrais de norte a sul, com diversas lideranças indígenas e defensores de direitos humanos executados, como Bruno Pereira e Dom Phillips, um caso que ganhou repercussão mundial, mas foi minimizado por Bolsonaro. A promessa de Lula em criar o Ministério dos Povos Originários traz à tona a urgência em termos mais seriedade e protagonismo para aqueles que garantem a preservação de 80% da biodiversidade do mundo. Investimentos em tecnologia, ciência e pesquisas com participação internacional, manejo sustentável e reforço à política socioambiental foram palavras fortes durante a campanha de Lula.

A certeza de que teremos no próximo governo prioridades como o combate à fome e às desigualdades sociais nos trazem de volta ares de esperança em dias melhores. Combater o racismo e a misoginia, defender as crianças e adolescentes, investir na educação para recuperar o atraso escolar causado pela má gestão durante a pandemia serão tarefas constantes para a equipe de Lula. Sem falar na saúde que foi deteriorada de dentro para fora, com vários indícios de corrupção, desvio de verbas e sucateamento do SUS visando as privatizações. Não será uma transição fácil. Não pegaremos a casa organizada e o quanto eles puderem dificultar, irão fazer.

Nesse momento, bolsonaristas estão nos entregando cenas ridículas e vergonhosas pelas estradas do país. Inconformados, vários grupos fecharam BRs por não aceitar a derrota de Bolsonaro nas urnas. De pedidos de intervenção militar, golpe de estado, fechamento do STF, até placas dizendo “ninguém irá comer o meu cachorro”, a realidade paralela em que essas pessoas estão vivendo ultrapassaram, há muito tempo, os limites da liberdade de expressão e chegam a crimes. A mesma PFR que foi tão ativa para realizar operações no dia da eleição segue inerte, compassiva e cumplice dos arruaceiros. Mesmo com a determinação do STF para que os bloqueios das rodovias fossem cessados imediatamente, já são três dias de um show de horrores antidemocráticos em vários pontos do país. Para quem achava que a vitória do PT transformaria o país numa ditadura, pedir golpe de estado para Bolsonaro seguir no poder é a prova da ignorância vil e da incoerência em que essas pessoas vivem. Enquanto os militantes bolsonaristas estão nas estradas causando tumulto, aqueles que os financiam seguem no submundo da civilidade.

Existe uma parcela considerável da população que seguirá se identificando com os discursos e comportamentos racistas, machistas, homofóbicos, xenofóbicos e de total desprezo pelos mais pobres. É exatamente contra essa parcela da sociedade que precisamos seguir em resistência. Células neonazistas estão crescendo no sul do país, principalmente em Santa Catarina. Nesse dia de finados, uma cena escabrosa onde militantes bolsonarista fizeram a saudação nazista, de braços estendidos em direção da bandeira enquanto tocava o hino nacional. São criminosas e doentias ações como essa e devem ser combatidas com veemência.

Como disse Caetano Veloso, “é preciso estar atento e forte”. Uma onda de euforia tomou parte do nosso povo com a volta de Lula, mas uma onda reacionária também toma conta de parte da população e precisamos de estratégia para trazer de volta a sanidade coletiva. Tenho certeza que esse trabalho não será apenas para um mandato de quatro anos, será um trabalho para a nossa geração. É preciso conhecer o passado para pode analisar o presente e, só assim, vislumbrar um futuro. Nosso presente está obscuro demais quando temos, em plena luz do dia, pessoas fazendo saudações nazistas e pedindo um golpe de estado e nada acontece, ninguém é responsabilizado e punido.

Não existem dois Brasis, mas existem dois modelos de sociedade em pauta. Tiramos Bolsonaro da presidência, mas ainda teremos um Congresso e um Senado cheio de bolsonaristas. Nossa missão é entender que o bolsonarismo não representa a maioria do povo brasileiro. A maioria do povo deseja saúde, educação, emprego, comida na mesa e um projeto de sociedade com mais igualdade social. Vamos comemorar sim, vamos encher nossos pulmões de esperança, mas sem baixar a. Nossa jovem democracia passa por momentos turbulentos e cabe a cada um de nós fazer a nossa parte por um presente e um futuro melhor para todos. A eleição de Lula trouxe um sopro de vitalidade e autoestima na nossa gente, e esse sopro irá acender a chama de bons tempos que virão. Que assim seja.

*Bia Pankararu tem 28 anos, é mulher indígena, sertaneja, mãe de Otto, LGBT+, técnica em enfermagem e produtora cultural e audiovisual. Ativista pelos direitos humanos e ambientais. Comunicadora da rede @povopankararu.

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