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Crédito: Instagram @cptne2
Com a Comissão Estadual de Acompanhamento dos Conflitos Agrários paralisada, aproximadamente 150 famílias do Engenho Barro Branco, em Jaqueira, na Mata Sul de Pernambuco, vivenciam uma escalada de violência. Na noite da última sexta-feira, 1º de setembro, a liderança rural local identificada como Antônio C. foi ameaçada de morte juntamente com sua esposa quando voltavam para casa, na estrada que dá acesso ao sítio onde vivem.
O fato aconteceu um dia após Antônio ter relatado pessoalmente ao ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Sílvio Almeida, e à governadora Raquel Lyra o cenário de conflitos agrários na região, em evento no Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), no Recife. Barro Branco é o maior imóvel da falida Usina Frei Caneca, hoje arrendada pela empresa Agropecuária Mata Sul S/A, e que acumula altas dívidas e passivo trabalhista.
De acordo com as informações divulgadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), a esposa do agricultor Antônio foi abordada por um homem armado e encapuzado. Com a arma apontada para a cabeça da mulher, o homem teria avisado que a liderança deveria sair “disso” e que havia “muita gente grande por trás disso”. Antônio ainda informou à Pastoral que, no dia anterior (31), foi seguido por homens em uma moto na área urbana de Jaqueira e que, ao entrar na estrada que dá acesso ao seu sítio, foi alertado por alguns trabalhadores que havia pessoas com comportamento suspeito paradas na estrada.
A interpretação da CPT – que denunciou o ocorrido -, nas palavras do agente pastoral Geovani Leão, é que “a ameaça veio por causa da atitude que seu Antônio teve de participar da atividade no IFPE e de entregar em mãos um resumo do que as famílias vêm sofrendo há tantos anos em Barro Branco e também em outras comunidades”.
Criada em 2022 pelo então governador Paulo Câmara, a Comissão Estadual de Acompanhamento dos Conflitos Agrários de Pernambuco (Ceaca-PE), coordenada pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, está suspensa na gestão atual. A Comissão foi instituída pelo decreto estadual nº 52.339/2022, mesmo mecanismo legal que criou o Programa Estadual de Prevenção de Conflitos Agrários Coletivos (PPCAC).
Havia uma expectativa de que a comissão fosse renovada após a posse da governadora, mas, até o momento, isso não veio a público. À Marco Zero, a pasta culpou a gestão Paulo pela suspensão das atividades da Ceaca.
A equipe do governo estadual informou que o governo passado “não realizou a programação financeira para continuidade da política no exercício de 2023, o que fez com que o programa sofresse descontinuidade. Nessa esteira, nossa Secretaria de Justiça e Direitos Humanos está realizando as articulações necessárias para o planejamento financeiro para o retorno do PPCAC, tendo em vista sua inclusão na LOA 2024, para assim viabilizar seu retorno no ano que vem”, disse a nota.
De caráter exclusivamente consultivo, a Ceaca tem o objetivo de contribuir na implementação de medidas que visem à prevenção, mediação e resolução de conflitos agrários coletivos no estado, a fim de garantir o direito à terra e a efetivação de sua função social.
“A comissão passa a colocar diversas secretarias e órgãos em uma mesma mesa para tratar individualmente de cada processo de conflito agrário, envolvendo vários órgãos do governo e as defensorias públicas da União e do estado. O grupo vai individualizar as demandas e discutir, de forma articulada, as melhores soluções para pacificar esses conflitos”, prometeu Paulo Câmara, em anúncio em março do ano passado.
Na avaliação do presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), André Carneiro Leão, “a elevação da tensão em Barro Branco reforça a importância da retomada da Ceaca e a necessidade de que o Judiciário, tanto estadual como federal, passe a efetivamente mediar o conflito considerando toda a sua complexidade, e não apenas com um olhar pontual”.
O CNDH acompanha as questões fundiárias em Pernambuco e realizou duas visitas a Mata Sul do ano passado para cá. A última foi no mês passado, quando a reportagem também esteve no local. Na ocasião, o Conselho e a Marco Zero presenciaram uma situação de conflito em Barro Branco, com seguranças privados instalando cercas elétricas sem avisar à comunidade. Muitas pessoas relataram que levaram choque porque não havia sequer uma placa avisando.
Poucos dias depois, no sábado 28 de agosto, a Polícia Militar cumpriu mandado de reintegração de posse de área de plantação de famílias agricultoras da comunidade em favor da empresa Agropecuária Mata Sul S/A. Segundo o CPT, a mesma ordem judicial também criminalizava as famílias ao determinar voz de prisão para quatro agricultores caso estivessem na área durante a execução do mandado.
A pastoral denuncia que, na ocasião, à revelia do que previa o mandado, funcionários da empresa destruíram mais de 150 pés de laranja, 300 pés de coco, 1.250 pés de banana, além de outras variedades de alimentos plantados.
Antônio e sua família foram incluídos esta semana no Programa Estadual de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PEPDDH). Saiba mais ao final da reportagem.
Cercados por gado solto, ameaçados por capangas armados e sofrendo investidas de drones com agrotóxicos, agricultores e agricultoras familiares que vivem nas terras de Barro Branco são vítimas de criminalização. Segundo Geovani Leão, da CPT, essas pessoas são acusadas de serem invasoras das terras e praticarem desmatamento e tráfico de drogas e armas, assim como acontece em Fervedouro. Enquanto isso, a criação de animais e a plantação de eucalipto ganham força.
Na verdade, explica o agente pastoral, essas pessoas são posseiras que lá vivem e tiram o sustento dessas terras há décadas, alguns há mais de 50 anos. Diferente da realidade de outros engenhos, usinas e fazendas na Mata Sul do Estado, que têm sido adquiridos em leilões por valores irrisórios, Barro Branco ainda não foi leiloado.
Porém, existem processos em curso. Alguns são de interdito proibitório, contra quatro agricultores, sendo Seu Antônio um deles, impedindo a produção nas lavouras. O interdito proibitório é uma ação de defesa da posse no sentido de impedir que uma agressão iminente a um bem seja concretizada. Há também ações de reintegração de posse contra toda a comunidade.
Antigas usinas hoje falidas, como a Frei Caneca, são imensas devedoras aos cofres públicos e têm enormes passivos trabalhistas. Na avaliação de Geovani, é preciso fazer com que os governos federal e estadual cobrem essas dívidas ou desapropriem as terras.“Para resolver o problema do conflito é preciso resolver os problema da terra”, defende.
As ameaças no local não são novas. Elas começaram em 2020, início da pandemia, quando um agricultor foi baleado com sete tiros numa comunidade próxima, no Engenho Fervedouro, também em Jaqueira e nas terras onde igualmente funcionou a Usina Frei Caneca. Depois desse episódio, veio à tona uma lista com 20 agricultores da Mata Sul ameaçados de morte.
Em 2022, Jonatas, uma criança de nove anos, foi assassinada dentro de casa por sete homens encapuzados e fortemente armados, no Engenho Roncadorzinho, município de Barreiros, a 80 quilômetro de Jaqueira. Ele era filho de uma liderança local, o agricultor Geovane da Silva Santos. Famílias já vinham denunciando a violência na região antes da morte do menino, conforme mostrou a MZ em matéria na época.
“É preocupante porque é uma violência que vem crescendo”, reforça Geovani.
A CPT e a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape) acionaram diversas autoridades após a ameaça a Antônio e sua esposa na tentativa de garantir segurança às famílias de Barro Branco e para que seja agilizada uma solução definitiva para os conflitos. Entre as autoridades, estão o Governo do Estado, o Ministério Público de Pernambuco, o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Instituto de Terras e Reforma Agrária do Estado de Pernambuco (Iterpe).
Dados da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos mostram que atualmente o Programa Estadual de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PEPDDH) acompanha 50 pessoas em Pernambuco, sendo que 35 acompanhados atuam pelo direito à terra e ao território, ou seja, são de populações campesinas, comunidades quilombolas e povos indígenas.
Após a ameaça do último dia 1º, o programa, que já atua em Barro Branco desde 2020, foi acionado pela rede que acompanha os sitiantes de Barro Branco para proteger Antônio e sua família, que já foram retiradas do local do conflito. À reportagem, a secretaria informou que “por força da lei, o caso está em processo de triagem, com previsão de ser encaminhado ao Conselho Deliberativo do PEPDDH-PE na próxima reunião ordinária, que ocorrerá ainda na primeira quinzena deste mês de setembro”.
Na nota sobre a suspensão das atividades da Comissão Estadual de Acompanhamento dos Conflitos Agrários de Pernambuco, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos também afirmou que “muito embora a gestão passada tenha, irresponsavelmente, deixado este importantíssimo programa sofrer descontinuidade, os outros programas da nossa pasta, a exemplo do Núcleo de Acolhimento Provisório (NAP) e o Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PEPDDH), têm conseguido entregar a proteção adequada aos envolvidos nos conflitos agrários coletivos, com base nas nossas atribuições enquanto Secretaria de Justiça e Direitos Humanos na mediação desses conflitos”.
Mesmo o Engenho Barro Branco sendo acompanhado pelo Programa Estadual de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos desde 2020, em virtude dos conflitos e da ameaça a outro agricultor, já protegido pelo programa, isso não impediu novas ameaças.
O PEPDDH-PE é responsável por executar ações de proteção, articulações e encaminhamentos de demandas ao sistema de Justiça e segurança pública, órgãos da gestão pública na esfera estadual e federal, responsáveis por incidir em situações que envolvem conflitos agrários, e ainda serviços da gestão municipal, visando acompanhamento integral, individual e coletivo às famílias.
Sobre o caso de Antônio, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos informou à MZ, também em nota, que “Considerando a necessidade de resguardar o sigilo no acompanhamento ao caso, de modo a garantir uma atuação segura e não rastreável nesse momento delicado, detalhes das medidas de proteção adotadas não poderão ser expostas, todavia, todas elas estão sendo aplicadas de forma a garantir segurança à família ameaçada e comunidade residente no Engenho Barro Branco”.
“Os diálogos com o Sistema de Justiça, serviços de Segurança Pública entre outros órgãos das esferas estadual e municipal, assim como com entidades da Sociedade Civil, permanecerão acontecendo de modo a garantir acompanhamento célere a todas as outras demandas que envolvam ameaças perpetradas contra às famílias residentes na localidade citada”, complementou o governo.
“Também acionamos outro Programa de Proteção vinculado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, o NAP – Núcleo de Atendimento Provisório – e o colocamos à disposição do ameaçado e de sua família”, concluiu a nota da secretaria.
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Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com