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Planejamento urbano “privatizado”, um legado da esquerda recifense

Inácio França / 28/09/2015

0e6e94908cc2f582e3dffb6f9da396f3 (1)Durante boa parte do século XX, o Recife era visto pelos urbanistas brasileiros como a capital com maior participação da sociedade em seu planejamento. Não por acaso, as Zeis – Zonas Especiais de Interesse Social –, áreas de baixa renda prioritárias para obras de infraestrutura e regularização fundiária, são a maior contribuição dos movimentos sociais recifenses para o urbanismo brasileiro. Agora, isso faz parte do passado: o destino da cidade está nas mãos de poucos empresários.

O desmantelamento dessa tradição democrática, contudo, não foi obra dos políticos herdeiros da ditadura militar, nem da safra de gestores autoproclamados modernos e eficientes. Na opinião de todas as especialistas entrevistadas, foi o Partido dos Trabalhadores, em seus 12 anos à frente da prefeitura, que privilegiou os interesses do capital privado no planejamento urbano. Antecipo que, coincidência ou não, nenhum dos ex-prefeitos petistas se dignou a responder aos questionamentos do Marco Zero Conteúdo.

Antes de continuar, a linha de tempo apresentada abaixo ajudará a entender a construção de uma cultura de participação social nos debates sobre o crescimento e desenvolvimento da cidade:

Quando o metalúrgico João Paulo, um político vinculado tanto ao sindicalismo quanto à luta por habitação, assumiu a prefeitura do Recife, os militantes do movimento social e os urbanistas esperavam o aprofundamento da prática participativa em relação à cidade. Não foi o que aconteceu.

A presidente da secção pernambucana do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Vitória Régia Andrade, acredita que as condições para a “terceirização” do planejamento foram criadas quando o poder público perdeu sua capacidade de planejar:

“As equipes dos nossos órgãos de planejamento como Sudene no plano regional; Condepe, Fiam e Fidem, no plano estadual; e a URB, na esfera municipal, foram desmontadas. Antes, havia equipes permanentes de planejamento, com técnicos coordenados por urbanistas”. “Esses servidores se aposentaram ou pediram exoneração. Hoje, suas funções são ocupadas por cargos comissionados, muitos indicados por deputados ou vereadores. É assim na URB. Até no Instituto Pelópidas da Silveira os arquitetos são cargos comissionados ou contratos temporários, sem estabilidade. E isso começou no governo do PT”.

Sem estabilidade e sem autoridade, quem ficou viu projetos sendo decididos apenas por “critérios políticos”. Aqui, o uso das aspas não é casual. Ex-diretores da área de controle urbano, informaram que, no segundo mandato de João Paulo e na gestão João da Costa, os processos de projetos para construção de edifícios residenciais, empresariais e shopping-centers eram decididos bem longe da Secretaria de Planejamento.

Lógica invertida

O vácuo provocado pelo descaso foi ocupado rapidamente.

Numa conversa com Andréa Câmara, diretora do Centro de Ciência e Tecnologia da Universidade Católica de Pernambuco e coordenadora do Plano Centro Cidadão, convênio entre a prefeitura e a Unicap para definir os novos usos para a área do bairro de Santo Amaro e centro expandido do Recife, foi possível apreender a lógica do urbanismo focado nos interesse de toda a cidade, não apenas de alguns: primeiro vem o diagnóstico, depois as diretrizes a serem seguidas para a elaboração do Plano Urbanístico, depois se cria o Desenho Urbano, o Plano de Massa e por último o projeto do que será construído.

Em Recife, a dinâmica do bom urbanismo inverteu-se: a empreiteira xis ou ipisilon diz o que quer fazer em determinada área da cidade, já com o projeto da construção pronto. E os gestores públicos correm para viabilizá-lo, atuando mais como lobistas e menos como representantes da população.

Para a presidente do IAB-PE, o Recife está em um patamar “abaixo de zero” neste assunto. “E a coisa só vai mudar quando essa preocupação voltar à agenda pública, com a retomada do planejamento contínuo, que passa pela sequência planejamento-implementação-monitoramento-planejamento…, e assim sucessivamente”.

Participação fake x participação real

Questionada se as iniciativas da atual gestão de Geraldo Julio, como o ciclo de debates Recife Planeja e a criação de uma comissão multilateral para revisar o plano urbanístico para o Cais José Estelita, não seria um passo na direção que aponta, Vitória Régia não perdoa:

“É participação social fake. Foi assim no episódio do Estelita. Acompanhamos tudo, cansamos de nos reunir, eles tiveram a oportunidade de fazer algo bem melhor, mas preferiram atender ao consórcio. E depois, de que adianta juntar gente para fazer um plano e o plano ficar guardado? Só para dizer que fez um plano?”

Ok, Vitória representa uma entidade da sociedade civil, está acostumada a embates e debates acalorados com o poder público. Além disso, representa os arquitetos, categoria profissional que deve ter seus interesses corporativos na briga por nichos de mercado. Por isso, resolvemos escutar a opinião de quem estava na gestão municipal até há pouco tempo.

Com a palavra, Evelyne Labanca, a ex-presidente do Instituto Pelópidas da Silveira:

“As formas de participação utilizadas servem para cohonestar processos conflituosos ou contestáveis. Quem participa não se enxerga no produto final. Quem não se enxerga, sente-se usado”.

Por cohonestação, entenda algo como se cercar de pessoas e entidades que emprestam sua credibilidade ao processo.

Evelyne, hoje no Sebrae, explica porque é tão importante a participação da sociedade nessas discussões que, a princípio, parecem tão técnicas. “Todos nós somos consumidores e usuários do espaço que as intervenções urbanas irão gerar”. Não vale, portanto, apenas a lógica do eu-posso-pagar-para-viver-num-edifício-aqui-então-que-façam-esse-edifício, tão comum no discurso da classe média.

Cedo ou tarde, os políticos e os gestores públicos, eleitos ou indicados, terão de se acostumar com formas contemporâneas de participação popular que eles não controlam. A interação pela internet será fundamental para isso. Movimentos como o Ocupe Estelita, segundo esse raciocínio, serão a regra, não a exceção.

Segundo ela, “a rua é o espaço de declaração coletiva de um alinhamento entre pessoas e entidades que já acontece nas redes virtuais”. Aplicado a uma frase famosa, isso implicaria em dizer que “a praça é do povo, como o céu é do condor, mas esse povo agora se organiza e se articula primeiro nas redes sociais, não apenas nos partidos”.

Déficit de credibilidade

Sem credibilidade entre aqueles que geralmente participam dos debates – os militantes engajados e os especialistas – a prefeitura agora se propõe a conduzir a elaboração do Plano de Ordenamento Territorial, o que implica na revisão da legislação do setor, como o Plano Diretor e da Lei de Uso e Ocupação do Solo. Para isso, o Estatuto da Cidade exige participação popular. Não será simples. O episódio da aprovação do plano sob medida para as empreiteiras no Cais José Estelita minou a credibilidade da prefeitura.

Evelyne Labanca diz que o poder público precisará modificar completamente a lógica com que se relaciona com a população. “Revisar essa lei sob o velho pensamento de que basta apresentar o texto, chamar a audiência pública e votá-lo já não cabe. No entanto, isso não é responsabilidade apenas da prefeitura e dos militantes engajados, é uma tarefa de todos, pois o que está em discussão são decisões urbanísticas irreversíveis para a cidade”.

Integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco (CAU-PE), a professora da Universidade Católica de Pernambuco, Amélia Reynaldo, é quase uma unanimidade entre os urbanistas pernambucanos. Respeito adquirido pela experiência e pela presença em várias questões importantes na histórica da região. Ela, porém, não acredita que a transformação mencionada por Labanca possa vir a acontecer tão cedo.

“Nos últimos anos, qual a postura adotada pelos vários representantes da prefeitura nos fóruns e conselhos da área? Eles ficam calados, não participam. Sabe por quê? Porque hoje a sociedade civil legitima processos previamente definidos”.

Amélia é contundente: “É legítimo a Ademi [Associação das Empresas do Mercado Imobiliário] lutar por suas posições diante de todos, como por exemplo, defender que em uma determinada área da cidade não cabe habitação de interesse popular. Seria justo, mas os empresários não precisam mais disso, pois os empresários estão negociando o que lhes interessa fora do ambiente democrático, ou seja, em negociações fora do espaço de negociações”.

Uma pausa para lembrar alguns comportamentos dos ocupantes do nono andar do Palácio Antônio Farias:

jpJoão Paulo bancou politicamente a construção das torres gêmeas da Moura Dubeux no Cais de Santa Rita num momento em que a prefeitura do Recife participava, junto com a de Olinda, o Governo de Pernambuco e o Governo Federal na elaboração do Projeto Recife-Olinda, para a faixa litorânea do Pina (Recife) ao Carmo (Olinda). Na época, a aprovação da obra pela prefeitura pegou de surpresa os técnicos do projeto que já tinham decidido pela sua rejeição.

jcJoão da Costa defendeu ardorosamente o projeto do consórcio Moura Dubeux-Queiroz Galvão para o Cais José Estelita em um formato ainda mais agressivo para a paisagem do que aquele aprovado. Chegou a reclamar publicamente de que as empresas deveriam investir em comunicação para convencer a população e, no último dia de sua gestão, aprovou o projeto ainda nos moldes iniciais em reunião relâmpago do Conselho de Desenvolvimento Urbano.

julioGeraldo Julio, mesmo em São Paulo e à noite, sancionou a lei do plano urbanístico para o Cais José Estelita apenas sete horas após sua aprovação pela Câmara Municipal do Recife. O plano aprovado, aliás, era bastante diferente daquele enviado pela Instituto Pelópidas da Silveira para análise do Conselho da Cidade. A proposta foi modificada no caminho entre o Instituto e o Conselho, atendendo aos interesses do consórcio. Ninguém assumiu as modificações.

Com a memória arejada, vamos continuar com Amélia Reynaldo:

“Tudo nos leva a supor que há outro ambiente de negociação onde setores privilegiados desfrutam de relações privilegiadas, inacessíveis para a maioria dos cidadãos. Talvez, por isso, os prefeitos fazem ‘de graça’ discursos positivos a favor dos empreiteiros recifenses”.

Em suas aulas, a professora Reynaldo explica que as boas experiências de reforma urbanística foram todas conduzidas pelo poder público. Ela costuma explicar aos estudantes de arquitetura que existe outra forma de fazer cidades. “E estou falando de cidades capitalistas”, insiste.

Ela não tem repulsa ou ojeriza à iniciativa privada. Não se trata disso: “Nessa outra forma de fazer cidades, o capital privado é fundamental, mas sob a égide do interesse público”.

Parece óbvio. No Recife, deixou de ser.

O outro lado

No dia 1 de setembro, a assessoria da secretaria de Planejamento Urbano do Recife recebeu o seguinte e-mail da equipe do Marco Zero:

A minha pauta: a prefeitura pretende iniciar a elaboração do Plano de Ordenamento Territorial, que requer participação social efetiva, conforme determina o Estatuto da Cidade, mas terá de enfrentar a falta de credibilidade junto aos movimentos sociais, provocada pela postura no caso do Novo Recife.

Vou usar o caso do Plano Urbanístico do Novo Recife, que saiu de um jeito do Instituto Pelópidas da Silveira e chegou modificado no Conselho da Cidade sem passar por qualquer outra discussão ou mesmo consulta ao Instituto (meu ponto de partida é o depoimento da ex-presidente Evelyne Labanca ao MPF) como exemplo de desrespeito ao posicionamento dos movimentos sociais em favor das grandes empreiteiras.

Minhas perguntas:

1) Como a PCR pretende garantir a participação social da sociedade civil no processo de discussão do Plano de Ordenamento Territorial?

2) Como os movimentos sociais poderão confiar em que seus pontos de vista e posicionamentos serão levados em consideração?

3) Como assegurar a participação em pé de igualdade com, por exemplo, as grandes empreiteiras, responsáveis por financiamento de campanhas eleitorais?

4) Qual o objetivo da PCR em iniciar o processo de revisão do Plano de Ordenamento?”

A exemplo do que aconteceu outras vezes com a prefeitura do Recife, não houve resposta.

***

O primeiro contato com João da Costa se deu por telefone. Ele pediu que enviássemos um e-mail para entender o que era exatamente o Marco Zero (compreensível, o portal existe há três meses) e qual nossa demanda.

Não foi possível falar diretamente com João Paulo, mas conversamos por telefone com sua secretária Júlia. Ficamos de enviar um e-mail idêntico àquele solicitado por João da Costa. Enviamos o e-mail e outra secretária, Solange Melo, acusou recebimento.

Nos dois casos, não houve resposta. Eis o texto da mensagem enviada para os dois ex-prefeitos na tarde de 16 de setembro:

Eu e o repórter Luiz Carlos Pinto estamos preparando uma série de quatro reportagens sobre a questão urbana do Recife. Serei mais preciso: a série irá tratar do papel e do peso das grandes empreiteiras no planejamento urbano do Recife.

Eis alguns links sobre o que já publicamos sobre a questão urbana:

http://marcozero.org/tese-de-doutorado-fortalece-tombamento-do-estelita
http://marcozero.org/dias-contados-para-o-fim-da-calmaria-no-cais-jose-estelita/
http://marcozero.org/bairro-do_recife-100-anos-depois
http://marcozero.org/o-recife-tem-dono

Acrescento esses links para que o senhor tenha clareza que a nossa abordagem é bastante crítica quando se trata da relação poder municipal – empreiteiras.

Nossa intenção é entrevistar o senhor e o ex-prefeito João da Costa, além do atual interlocutor da PCR para esse tema, o secretário de Planejamento Urbano, para uma matéria sobre a falta de transparência e de democracia dessa questão.

Com o senhor, pretendo perguntar a respeito da relação entre o nível de pressão exercido pela iniciativa privada sobre o poder público.

Podemos conversar pessoalmente, por telefone, por e-mail, skype, whatsapp, enfim como lhe for mais conveniente.

Grande abraço e muito obrigado pela atenção

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.