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Aline Aparecida vive na Ocupação 8 de Março, em Boa Viagem, com quatro filhas entre 1 e 12 anos. Sem comida garantida todo dia para as crianças, ela ainda enfrenta a dificuldade no acesso à água encanada e à rede de esgoto por conta das condições precárias de moradia. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.
Por Verônica Almeida*
Aline Aparecida da Silva, 31 anos, não sabe o que é um salário-mínimo desde 2018. Ex-auxiliar de serviços gerais, a desempregada mora num barraco de tábua três por três (3 metros x 3 metros) na Ocupação 8 de Março, instalada na Zona Sul do Recife. Vem sobrevivendo, com quatro filhas e um bebê que gesta na barriga, amparada por um auxílio de 400 reais (temporariamente elevado no último mês para 600 reais) e mais algumas doações de alimento. A gestante e sua família estão entre os pobres pernambucanos, considerados metade da população local, e no grupo dos 125,2 milhões de brasileiros (58,7%) que convivem com algum grau de insegurança alimentar. O cenário assustador põe em risco, segundo especialistas, o desenvolvimento de crianças, especialmente as que estão na primeira infância, de zero a 6 anos de vida.
Eram quase 14h, no dia 19 de agosto, quando a reportagem encontrou Aline e família iniciando o almoço. Lá, diante da comida limitada, as crianças menores, de 1, 4 e 8 anos, são servidas primeiro, e, depois, o que sobra na panela é dividido entre a filha de 12 anos e a mãe. O cardápio nesse dia tinha feijão, arroz e ovo, mas nem sempre é assim. “Às vezes só tem miojo (macarrão instantâneo). Já teve dias de a gente comer três vezes cuscuz ou dormir com fome”, relata Aline.
O tamanho da fome brasileira foi detalhado pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Apontou que o país voltou ao patamar da década de 1990, que a dificuldade de acesso a alimentos cresceu mais no Norte e Nordeste, como também em famílias comandadas por mulheres, formadas por pessoas pretas ou pardas e com crianças menores de 10 anos – assim como a de Aline. Um recorte dos dados por estado deve ser divulgado em breve, segundo a rede.
Anunciado pelo Fundo das Nações Unidas para a Alimentação (FAO), o avanço da pobreza no mundo tem seu lado brasileiro comprovado em recente estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social), publicado em julho. Baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios do IBGE (PNAD Contínua), o levantamento aponta Pernambuco como o estado onde o número de pobres mais cresceu entre 2019 e 2021 (incremento de 8,14%), sendo o quarto com a maior faixa de pessoas (50,32%) vivendo com renda per capita abaixo de 497 reais por mês.
Com a inflação em alta, 400 ou 600 reais por mês não pagam as despesas básicas de uma família. Dividindo os 600 reais do Auxílio Brasil que Aline passou a receber este mês (e receberá só até dezembro), são 120 reais por pessoa, bem abaixo dos 497 reais.
A filha mais nova de Aline deveria consumir um pacote de 200 gramas de leite em pó a cada dois dias. O produto oscila de 8 e 10 reais nos supermercados. Então, por mês, só para fazer o mingau da caçula, a dona de casa precisaria gastar de 120 a 150 reais. Se botar nesse orçamento a garota de 4 anos, outra em primeira infância, 50% dos 600 ou 70% dos 400 reais dão apenas para pagar o leite em pó para as duas menores. O mingau, na verdade, ainda exige farinha e o gás, cujo botijão custa no mínimo 110 reais, inviável para essa família.
Aline nasceu em São Paulo, suspeita ter descendência indígena e se criou em Pernambuco enfrentando fome desde a infância. Ela até concorda com a mensagem de resignação colada por algum vizinho na porta da frente de seu barraco: “Não é verdade que com dinheiro pode-se ter todas as coisas”. Mas sabe quanto faz falta cada real diante da fome, da doença e da incerteza quanto ao futuro próximo das filhas, o dia seguinte.
Sem comida garantida na proporção certa e muito menos na qualidade nutricional desejada, Aline e filhas ainda enfrentam dificuldade no acesso à água encanada e à rede de esgoto, em razão das condições improvisadas de moradia. “Minha filha de 4 anos vive com cansaço e a de 1 ano está com o corpo estourado (cheio de feridas), talvez com o sangue fraco”, queixa-se.
Para ela “não é desonra morar num barraco” onde só cabem uma cama e alguns pertences. Não tem condições de pagar aluguel, cujo menor valor gira em torno de 350 reais nas comunidades mais periféricas e desestruturadas, às margens de rios ou nas encostas de morros prestes a desabar. Com duas filhas pequenas fora da creche e mais um bebê para nascer até o início de 2023, Aline sabe que não conseguirá emprego nem terá como se dedicar a um trabalho informal nem tão cedo.
O jeito é resistir com outras mulheres na luta por moradia, além de continuar indo atrás de doações de alimentos. Aline recebe uma cesta básica da Igreja Católica e mais alguns gêneros do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que ajuda a organizar a comunidade. A líder da Ocupação 8 de Março, Danielle Abravanel, mostra uma horta comunitária no espaço, iniciativa para contribuir com a alimentação de parte das mais de 500 famílias ali abrigadas.
Infográfico Mapa da Pobreza no Brasil de Marco Zero
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* Este conteúdo integra a série Eleições 2022: Escolha pelas Mulheres e pelas Crianças. Uma ação do Nós, Mulheres da Periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
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