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Sem creche, mães deixam de trabalhar e crianças tornam-se mais vulneráveis

Marco Zero Conteúdo / 05/09/2022

Moradora de Santo Amaro, Thifhany , de 21 anos, depende do auxílio do governo federal para sobreviver e busca, sem sucesso, uma vaga na creche para a filha de 1 ano e 5 meses. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.

Por Verônica Almeida*

A dificuldade de acesso à creche e à escola adia o direito da primeira infância à educação. “No Recife, há um déficit de cerca de 5.200 vagas para creche, pré-escola e ensino fundamental na rede do município, parte atingindo crianças menores de 6 anos”, denuncia André Torres, membro do Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares e do Comitê Estadual de Implantação e Monitoramento do Sipia-PE, sistema onde são registrados os casos de violação de direitos da infância pelos Conselhos Tutelares.

Segundo Torres, há territórios da capital sem creche ou escola. Em outros, as unidades até existem, mas sem vagas para a necessidade local. “No bairro dos Coelhos, por exemplo, só tem uma creche, que foi ampliada mas ainda com vagas insuficientes”, cita. Em Santo Amaro, completa, uma unidade foi inaugurada este ano. Mesmo assim o déficit permanece. “Em 2021, 3.986 crianças e adolescentes não conseguiram matrícula na rede municipal de ensino, conforme os dados registrados”, completa o conselheiro, que atua na região central do Recife. “Algumas mães matriculam os filhos em bairros distantes, na esperança de remanejá-los depois do início das aulas para unidades mais perto do local de moradia, mas não conseguem e isso acaba levando ao abandono escolar”, comenta Torres.

Consulta feita ao Sipia-PE, no último dia 28 de agosto, indica que nos primeiros oito meses de 2022 o direito à creche de 1.807 crianças no Recife foi violado, de 425 delas por falta da unidade, e de outras 1.382 pela ausência de vagas. Santo Amaro, Várzea, Ibura, Imbiribeira e Iputinga são os locais de moradia das crianças mais desassistidas. Há registros sobre a violação de direito de outros 1.073 meninos e meninas, por falta de acesso à pré-escola, tanto por falta de vaga quanto por ausência do estabelecimento. Várzea, Ibura e Iputinga estão novamente entre os bairros mais citados, assim como Água Fria, Campo Grande e Caxangá. No Sipia-PE estão apenas as queixas que chegam aos Conselhos Tutelares, não alcançado a totalidade real de crianças fora da creche ou da escola.

Além da falta de vagas, o modelo de matrícula on-line é considerado excludente pelo conselheiro tutelar. “Nem todo o mundo tem celular, computador e internet, muito menos dispõe de R$ 1,00 para usar numa lan house”, afirma Torres, lembrando principalmente dos que estão em extrema pobreza.

Conselheiro tutelar no Recife, André Torres diz que há regiões da cidade desassistidas por creches e outras em que as unidades são insuficientes para atender a demanda. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.

Mais empobrecimento

O acesso à creche ou à escola negado compromete a educação, a proteção, a alimentação e outros cuidados necessários na infância. Contribui com o empobrecimento da família. “Recebemos testemunho de mães que buscam vaga nas creches para garantir a alimentação dos filhos ou porque não têm onde deixar as crianças. Elas perdem a oportunidade de trabalho, de geração de renda, de estudar e de se profissionalizar”, observa André Torres. O conselheiro afirma que ao não conseguir matricular os filhos, as mães acabam tendo o auxílio do governo federal suspenso. E muitas tendem a ocupar as ruas com as crianças em busca de sustento.

A maior presença de crianças nos semáforos, acompanhadas pelos pais, outro familiar, sozinhas ou com um vizinho de maior idade, é atestada por profissionais da Prefeitura do Recife que atuam na assistência à população de rua. Nas abordagens eles constatam também a presença de famílias do entorno da capital, que migram para os centros urbanos da cidade mais movimentados com a expectativa de obter esmolas. Dados oficiais do governo municipal apontam abordagem a cerca de 600 crianças e adolescentes nas ruas em 2021.

Esperando a vaga

“Desde o começo do ano procuro vaga em creche para minha filha de 1 ano e 5 meses. E não consigo. A vaga é importante pra ela e pra mim, porque preciso trabalhar e voltar a estudar. Na creche ela ia se desenvolver mais, conviver com os amiguinhos diferentes”, diz Thifhany Josiele de Lima, 21 anos, moradora de Santo Amaro. Ela e a filha Kyara têm como renda unicamente o auxílio do governo federal. “Com o Bolsa Família (Auxílio Brasil agora) eu pago o aluguel e compro as coisas da minha filha, mas não chega ao final do mês”. Thifhany reside num barraco de tábua sobre um canal, que inunda toda a vez que chove. A falta de creche afeta outras crianças da família.

Edna Maria de Santana, avó de Thifhany, protege com cadeado a pouca comida que consegue guardar na geladeira para garantir que filhos, netos e bisnetos tenham o que comer. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.

A avó de Thifhany, Édna Maria de Santana, 60 anos, que mora na mesma comunidade em outro barraco com dois filhos, quatro netos e um bisneto de 1 ano e 11 meses, relata: “Queria que Samuel estivesse na creche. Além de ter uma boa alimentação, seria muito bom pra ele”. O bisneto nasceu prematuro, precisou de tratamento em UTI e requer acompanhamento médico constante por causa de problemas no coração. No barraco de dona Édna o bem mais precioso, a comida, quando tem, fica guardado na geladeira, fechada com cadeado. Assim ela controla o consumo, para que na falta de alimentos para a família, os de menor idade não passem fome.

Ministério Público

As violações a direitos da infância previstos na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 são alvo de ações do Ministério Público de Pernambuco, tanto nas Promotorias da Infância, que cuidam de casos individuais de abandono e violência, como nas Promotorias da Cidadania, encarregadas de monitorar os problemas coletivos e as políticas públicas do Estado e das prefeituras em atendimento às crianças e aos adolescentes. A promotora Ana Maranhão, que atua na Promotoria da Infância da Capital, menciona preocupação com o aumento da fome e da pobreza, pois teme mais casos de abandono e violência física, sexual e psicológica.

Procedimentos especiais já foram abertos. O MPPE criou em julho de 2021 o Núcleo de Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas Josué de Castro (Núcleo DHANA). Uma das iniciativas é estimular a atuação dos promotores para a instalação e consolidação dos Conselhos Municipais de Segurança Alimentar, para que ações e serviços sejam executadas pelo poder público para reduzir a fome e outras formas de insegurança alimentar que afetam crianças e demais faixas etárias da população.

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Este conteúdo integra a série Eleições 2022: Escolha pelas Mulheres e pelas Crianças. Uma ação do Nós, Mulheres da Periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal

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