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“Quero abrir portas para as próximas que virão”, diz Robeyoncé, que pode ser primeira travesti no Congresso

Raíssa Ebrahim / 12/09/2022
Robeyoncé Lima em primeiro plano, à direita da imagem, veste blusa larga de cor vinho e mangas compridas. Usa cabelo preto comprido e sorri para a câmera, tendo ao fundo o rio Capibaribe, uma das pontes do centro do Recife e um telhado, à esquerda da imagem.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Ela foi a primeira da família a se formar na universidade, a primeira advogada travesti de Pernambuco e a primeira codeputada travesti do estado, pelo mandato coletivo das Juntas (PSOL), eleito em 2018 com 39 mil votos. Agora, Robeyoncé Lima, 34 anos, mulher preta, cria da periferia, quer levar para Brasília sua atuação em defesa dos direitos do povo negro e no enfrentamento às opressões contra a comunidade LGBTIA+.

Se for eleita deputada federal, será a primeira travesti do Brasil e também a primeira pessoa do Nordeste pelo PSOL a ocupar um assento na Câmara Federal, um ambiente longe de ser seguro e livre de violência política de gênero, assim como a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Mas Robeyoncé quer mais do que ser a primeira, quer abrir portas para as próximas que virão.

Ela recebeu a reportagem da Marco Zero no seu QG da campanha, uma sala no edifício Ébano, no centro do Recife. Entre uma agenda e outra, na correria para organizar o espaço e se arrumar, ela conversou sobre propostas, desafios, expectativas, futuro e a importância de uma travesti preta no Congresso. O número de candidaturas de pessoas trans bateu um novo recorde. O levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) encontrou 76 candidaturas, 44% a mais que em 2018, que teve 53.

Defensora de que o ex-presidente e candidato Luís Inácio Lula da Silva (PT) precisa se colocar mais à esquerda em determinadas pautas, Robeyoncé diz que, se for preciso, pode até ir de encontro a ele para defender os princípios em que acredita. Se eleita, a deputada não cogita sentar à mesa para relativizar o enfrentamento ao racismo, ao machismo e à LGBTIA+ fobia. Para ela, são “pautas inegociáveis”.

De perfil mais independente dentro do PSOL, Robeyoncé acumulou capital político com as Juntas e decidiu pelo desafio de se candidatar a federal, o que inclui não contar com a verba carimbada de reeleição, como aconteceria se ela tivesse permanecido com as Juntas. Cercada de expectativas, ela tem sido uma das responsáveis por provocar e questionar os psolistas sobre prioridades, planos para o futuro e recursos.

Depois do deputado federal Túlio Gadelha (Rede), que tenta a reeleição, Robeyoncé é a outra aposta da federação para a Câmara Federal por uma votação expressiva. Ele tem, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), aproximadamente R$ 800 mil em recursos de partidos e acumula 1,3 milhão de seguidores no Instagram. Enquanto ela recebeu pouco mais de R$ 320 mil e tem 26 mil seguidores. Para aumentar esse valor, está com financiamento coletivo online, com quase R$ 24 mil arrecadados.

A verba de campanha é um dos grandes desafios da codeputada. Com uma equipe que deve passar de 30 pessoas, os trabalhos começaram na base do “fiado”, porque o dinheiro do fundo partidário demorou para cair na conta. Mas para Robeyoncé, é preciso correr o risco. Como disse, “quem não arrisca não ocupa”. Ela vê as eleições de 2 de outubro como um degrau na construção do projeto que defende e como o retrato do seu tamanho em termos numéricos para disputar outros cargos e espaços. Caso não seja eleita este ano, já cogita disputar a vereança do Recife em 2024.

Confira os principais trechos da entrevista:

  • A decisão de se candidatar a federal

Se fosse para seguir o caminho mais fácil ou o caminho mais certo de resultados positivos, eu iria continuar para estadual.

Mas entendi também essa necessidade de ir para Brasília com uma narrativa que estamos construindo de ter travestis negras no Congresso Nacional pela primeira vez. E entendendo também que temos que eleger o presidente Lula, mas ele não pode ficar sozinho. Esse chamamento para Brasília pegou mais minha atenção, abriu mais meus olhos e foi mais forte no meu coração, entendendo que é um projeto que não pode ficar somente no estado de Pernambuco. Temos um projeto de ocupar a nação como um todo e, no local que é centro do comando e das decisões, Brasília, a gente não está.

  • Propostas para Brasília

Há princípios norteadores que direcionam nossa política para o bem-viver. Entendemos que uma sociedade sem machismo, sem racismo, sem LGBTIA+ fobia, sem preconceito –– seja de raça, de classe ou de xenofobia – é uma sociedade boa para todo mundo. Esse é o projeto de futuro que queremos construir com as pessoas.

Eu não vou colocar enfrentamento ao racismo, ao machismo e à LGBTIA+ fobia em mesa de negociação nenhuma. Posso ir de encontro ao governo Lula para defender esses princípios? Posso, porque eu não vou abrir mão dessas disputas de narrativa, desse lugar de fala como espaço de denúncia para as marginalizações e opressões dessas pessoas que, há séculos, vêm sofrendo.

Temos aí 200 anos de independência, mas independência para quem? Em um cenário em que, ainda hoje, a exclusão, marginalização, vulnerabilidade, violência e o extermínio dessas pessoas acontecem na necropolítica instalada no Brasil.

Defendendo o direito da classe trabalhadora, entendendo também que existem direitos inegociáveis. Direito à educação pública de qualidade, saúde pública qualidade e universalização do SUS. É preciso debater o Mais Médicos, que foi um avanço na saúde brasileira e agora retrocedeu.

Queremos construir com as pessoas e eu trabalho com princípios inegociáveis. Quando eu falo, por exemplo, da necessidade de enfrentamento ao racismo, isso traz à minha mente a questão de ações afirmativas, políticas públicas de equidade racial. Como trabalhamos a disparidade de gênero no Congresso Nacional? A pauta das mulheres na política, violência obstétrica, saúde para as mulheres, educação para as mulheres.

A cannabis, o que fazemos com as mães canábicas, que trabalham a questão da legalização da maconha para uso medicinal? No eixo de luta de classes, como trabalhamos, por exemplo, a questão da uberização? Da precarização do trabalho, do desemprego, que traz como consequência a própria fome? O Brasil voltou para o mapa da fome.

São eixos que, em torno deles, podemos desdobrar múltiplas ações e estratégias. Entendendo também, do ponto de vista federal, que precisamos da política pública de Lula vindo mais um pouquinho para a esquerda para poder efetivar.

Nem Lula governa sozinho nem a Câmara dos Deputados pode fazer muita coisa sozinha também. Tem que haver essa confluência, esse alinhamento do presidente Lula com a bancada de frente ampla de esquerda que vai estar eleita lá em Brasília.

  • Saída das Juntas

Temos que trabalhar os mandatos coletivos e potencializá-los, mas sem apagar as identidades individuais de cada pessoa. Porque esses mandatos coletivos podem desmembrar futuramente em projetos de ampliação, como é meu caso agora.

As pessoas sabem quem são as Juntas, mas muitas não sabem quem é Robeyoncé Lima, Carol Virgolino, Joelma Carla, Kátia Cunha e Jô Cavalcanti. Esses quatro anos de experiência nas Juntas trouxeram para nós essa importância, de fortalecer a ideia de coletividade, mas também as individualidades para projetos de ampliação no futuro.

Não que isso seja um abandono do projeto coletivo, mas, na perspectiva de ampliação, de ocuparmos esses espaços e usarmos esses coletivos como uma estratégia de multiplicação. Não é que eu esteja abandonando as Juntas. Vou ficar parlamentar até concluir os quatro anos de mandato. O projeto na verdade é ampliar na perspectiva de leitura mais ampla do projeto de sociedade. Estou saindo de um projeto coletivo, mas saindo completando os quatro anos de promessa de campanha que eu tinha feito. Vou sair em janeiro de 2023. Mas entrando para outro projeto coletivo que é o de fazer uma bancada de travestis negras no Congresso Nacional. Então é um coletivo e estou indo de um para outro.

  • Experiência na Alepe

Ir para uma nova eleição, mesmo que para outro cargo e mesmo que agora na modalidade individual, já traz uma experiência maior do que a primeira disputa. De 2018 para cá, eu tive muito aprendizado, seja da política partidária ou da política institucional, aprendendo mais sobre o processo legislativo. Na faculdade, a gente aprende só na teoria. Na Assembleia Legislativa, vemos na prática. Traz muito a experiência de como lidar também com a violência política, inclusive.

O lado bom, digamos assim, de, nos modos tradicionais, eu me candidatar individualmente é que o conservadorismo não vai ter mais justificativa nem política nem em termos de legislação de querer falar de mim. Com candidatura própria e sendo eleita, essa deslegitimação em termos de legislação eleitoral eu vou eliminar.

Virão outras? Sim, mas não haverá mais deputado me dizendo que eu tenho que me retirar de uma reunião porque eu sou assessora parlamentar (e não deputada eleita por fazer parte de uma candidatura coletiva). Isso não vai mais existir. Vou ser eu a titular do mandato, vai ser uma arma a mais para dizer que esse espaço é meu. É uma arma que eu tenho para não ser silenciada.

  • PSOL nunca elegeu federal no Nordeste

O PSOL nunca teve um deputado ou uma deputada federal por Pernambuco nem pelo Nordeste. Se ficarmos sem eleger, corre-se o risco, inclusive, de o partido deixar de existir financeiramente. Nós ainda sobrevivemos porque temos federais por Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Mas chegou-se a uma situação em que, se não elegermos federal e também não tivermos votações expressivas para federais, mulheres e mulheres negras principalmente, vai chegar uma hora que não vai haver recurso eleitoral para o partido.

A opção de ampliar a bancada estadual é importante, mas é importante também ter essa visão, a longo prazo ou a médio prazo, para que também o partido possa sobreviver. Porque a ampliação da bancada estadual é boa, mas não conta para o fundo eleitoral. A votação mais expressiva que tivemos para federal foi Ivan Moraes, em 2018, quando as Juntas se elegeram estaduais, e ele teve 18 mil votos. Foi o máximo a que chegamos.

Robeyoncé Lima (Psol), candidata a deputada federal, em campanha nas ruas. Crédito: @medusa_tr3

  • Independência no PSOL

Estou fazendo aquela posição de independente, mas que fica fluindo para um lado e para o outro, conversando com uma pessoa, com outra, com uma força e com outra. Porque também tem essa questão do partido e a necessidade de você se situar para também não se isolar. Também tem o próprio fator político Robeyoncé Lima, codeputada estadual eleita. Não sou qualquer independente, já com uma certa política dentro do meu partido, indo para federal com uma grande expectativa de ser eleita a primeira deputada federal pelo PSOL de Pernambuco e do Nordeste.

Essa expectativa traz para mim uma atenção maior. Então as pessoas atentam mais para o que eu vou falar, o que eu quero, o que eu estou pedindo, para aquilo que eu acho importante que haja na minha campanha. Isso faz um diferencial. Porque a gente precisa minimamente ter um senso organizativo para poder tocar essa campanha.

  • Votos em disputa

Se conseguir cerca de 180 mil votos, a federação garante uma cadeira, que será ocupada pela candidatura PSOL-Rede mais votada. Cogita-se a possibilidade de minha candidatura estourar e, mesmo com recursos menores do que Túlio Gadelha, feitos esses 180 mil votos, eu me eleger. Mas tem também a possibilidade de disputar as sobras. É necessário ter pelo menos 10% do quociente para disputar as sobras. São diversas variáveis, tem também o contexto de eu me eleger junto com Túlio fazendo duas cadeiras ou eu ficar na suplência.

  • Eleitores no interior

Com o Tour da Rob, já fomos para algumas cidades do Agreste e Sertão. O fato de não termos sobrenome e não fazermos parte da política tradicional dificulta nosso nome chegar nas lonjuras do Sertão. É muito difícil levarmos, por exemplo, para Araripina ou Ouricuri. Isso traz até uma certa reflexão de como podemos fazer a campanha chegar nesses locais mais distantes. Eu acho que a própria eleição das Juntas diz muito sobre isso, da dificuldade de nós aqui da cidade chegarmos lá no interior.

Metade dos votos das Juntas estão só no Recife. Eu imagino que, para minha eleição para federal, não vai ser diferente porque não temos um sobrenome político. Mas entendendo também que não podemos ignorar completamente o Agreste e o Sertão. Temos que fazer visitas em algumas cidades. A logística de algumas pessoas que vivem nas áreas rurais é diferente, escutam mais rádio do que veem TV.

Há as limitações nossas enquanto candidatura não tradicional, da velha política. Mas vamos fazendo essas incidências para ver até onde podemos ir. E precisando de pessoas ou lideranças locais que possam apoiar a candidatura para difundi-la dentro de uma comunidade, de um município, de um bairro. Porque, com pouco recurso, não teremos condições de ir constantemente ao interior.

  • E se não for eleita?

Se eu perder, vou estar com o coração tranquilo porque me entreguei até onde pude e estarei contemplada com as outras trans que podem ser eleitas federais, como Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), e estaduais, como Linda Brasil (PSOL-SE). Também estarei contemplada se as Juntas se reelegerem e com uma possível ampliação da bancada estadual do PSOL.

Entendendo que o caminho continua, esse “não dar certo” é um “não dar certo” agora, mas que pode ser utilizado como capital político para fazer planejamentos para o futuro. Numa possibilidade de não haver êxito nessa eleição, a gente pode tentar uma vereança em 2024. E aí eu me lembro muito de Dani Portela (Psol), que saiu candidata ao governo do Estado em 2018, ficou em terceiro lugar e o resultado desse capital político de 2018 foi, em 2020, ela ser a vereadora mais votada do Recife.

Objetivamente falando, o resultado desse pleito, mesmo que não haja a vitória propriamente dita, de eu me tornar uma mulher trans eleita federal, vai trazer para mim uma ideia do meu tamanho em termos numéricos. Eu vou poder mensurar qual é o meu tamanho em termos de votos. Onde é que estão meus votos? Onde é que não estão? Onde é que eu tenho incidência política? Onde é que falta eu chegar mais perto? Onde é que falta o nome Robeyoncé Lima chegar para a próxima eleição?

Então eu entendo como um caminho que não se encerra agora em 2022. É construir e não abandonar o projeto. Não desistir de fazer essa transformação política.

  • Campanha começou sem recursos

Na maioria dos partidos, existe essa dificuldade de planejamento. Era para termos começado o período eleitoral já sabendo quanto iria receber. A situação ideal seria a gente saber quanto vai receber antes da campanha. É um arriscar. Entendendo também que, se não arriscar, não ocupa, não chega. Precisa se arriscar, precisa se candidatar, precisa se registrar no partido político.

A gente no Brasil hoje não tem a possibilidade de uma candidatura autônoma. O Supremo Tribunal Federal está empurrando com a barriga essa discussão, que muitos movimentos sociais caem em cima.

E aí é a questão é como administrar esse risco, saber a moderação do risco. Eu não posso, por exemplo, contratar 200 pessoas para trabalhar na minha campanha, porque muito provavelmente eu vou estar endividada. Minha equipe acho que vai chegar em mais de 30 pessoas, contando o pessoal de rua, vídeo, filmagem, mobilização, comunicação, contabilidade, advocacia, aluguel do espaço.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com