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Cartaz na Ocupação 8 de Março, em Boa Viagem, no Recife, expõe situação de insegurança alimentar e mobilização popular pelo direito a comida e dignidade. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.
Por Verônica Almeida*
O aumento da pobreza e a consequente insegurança alimentar – que vai da incerteza sobre ter o alimento ou redução na qualidade e variedade (insegurança leve), diminuição da quantidade de comida por falta de condições em obtê-la (insegurança moderada) até passar fome (insegurança grave) – afetam em cheio da gestação ao desenvolvimento infantil, observam médicos, nutricionistas, epidemiologistas e demais estudiosos da saúde. O agravamento das desigualdades sociais e as vulnerabilidades associadas são temidos e já percebidos de alguma forma no SUS.
“A miséria e a volta do Brasil ao Mapa da Fome rebatem no nosso cotidiano nas ruas, praças, semáforos e, claro, nas unidades de saúde”, diz Carmen Albuquerque, assistente social no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Segundo ela, “estamos diante de uma tragédia humanitária, com a pobreza e a fome piorando indicadores de adoecimento e mortalidade nas atuais e futuras gerações”.
Carmem chama a atenção para as crianças sobreviventes. “Submetidas à fome ou a outros níveis de insegurança, marcadas desde já, comprometendo seu crescimento e desenvolvimento físico, cognitivo e emocional ao longo da vida”. Na rotina de acolhimento às gestantes e parturientes do HC, a assistente social tem feito cada vez mais encaminhamentos aos Centros de Referência em Assistência Social dos municípios, na tentativa de inclusão de mais mulheres em programas de apoio.
A colega Ana Burle, nutricionista também no HC da UFPE, lembra a cruel realidade das mulheres que passam fome e continuam amamentando. “Se uma mãe for desnutrida, fica mais depauperada, pois o aleitamento vai exigir das reservas já escassas do organismo.” O problema de desnutrição mais visto no pré-natal, segundo ela, são mães com anemia. “Fazemos o uso de sulfato ferroso e do ácido fólico pra impedir que o tubo neural do feto venha a ter formação inadequada”.
O pediatra Ruben Maggi, do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), com mais de 30 anos de experiência no tratamento de crianças desnutridas em Pernambuco e em outros estados, não tem dúvidas do quanto o cenário atual penaliza gestantes e bebês. “As crianças com menos de 5 anos estão em plena fase de desenvolvimento. Os bebês habitualmente triplicam de peso no seu primeiro ano de vida e continuam a crescer bastante”, explica. Situação de fome e desnutrição nessa idade, sobretudo em menores de 2 anos, gera, segundo o médico, “sequelas às vezes irreversíveis do ponto de vista do cérebro e do desenvolvimento infantil, associado a outras doenças”. Em comunidades indígenas, mais desprotegidas, o problema pode ainda ser maior na opinião de Maggi
Crianças em situação de pobreza, fome ou desnutrição são propícias a doenças infecciosas, tais como diarreias e pneumonias. Além disso há as chamadas mortes perinatais, fruto de gestações não planejadas que não tiveram acompanhamento de qualidade no pré-natal, explica o médico. Ele avalia que nas décadas de 2000 e de 2010 houve melhora significativa da desnutrição infantil no Brasil, em razão da cobertura de pré-natal e de vacinas, atenção básica de saúde em comunidades mais distantes, implantação do Programa Mais Médicos, inicialmente com a contribuição de médicos cubanos. “Essa experiência pioneira melhorou significativamente todos os indicadores”, diz, referindo-se ao Mais Médicos.
O temor do retorno de doenças infecciosas em proporções maiores entre a população infantil também preocupa médicos que acompanham por décadas as consequências da desigualdade social na saúde de crianças. Cleusa Lapa, cardiologista do Imip, e o professor aposentado de Cardiologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Lurildo Saraiva, uma referência nos estudos brasileiros sobre febre reumática, alertam para a associação entre pobreza e essa doença negligenciada, que nunca deixou de acometer populações pobres. “Essa associação é histórica. A febre reumática é considerada um padrão de injustiça social e tende a aumentar”, diz Cleusa, considerando o retorno do Brasil ao Mapa da Fome.
Saraiva, que atuou na década de 1970 no Hospital Barão de Lucena, no Recife, lembra o quanto ficou espantado, na era do “mentiroso milagre econômico, com exclusão dos mais humildes”, diante da “incidência de doentes e da mortalidade por cardiopatia valvar reumática, chegando a ver duas meninas mortas, coisa quase extinta em literatura médica na época”. Causada pela bactéria estreptococos, que entra no organismo a partir de uma infecção na garganta, a febre reumática pode danificar válvulas do coração, matando ou deixando o paciente doente para o resto da vida. Sua frequência é comum entre pessoas que vivem em locais úmidos, aglomerados e sem saneamento básico. Ao longo da carreira e até recentemente, antes de se aposentar das aulas no curso médico, Lurildo Saraiva continuava assistindo casos de febre reumática entre crianças e jovens. Publicou o livro Miséria, pobreza e febre reumática, narrando as condições de vida de pacientes que recebia no ambulatório.
Ruben Maggi observa que “as crianças nascem pobres porque nascem em famílias pobres, lares sem emprego”. Para ele, é fundamental que os governantes ofereçam mais do que um auxílio temporário, pois os valores não garantem o básico. “Precisa gerar empregos, para que a criança nasça numa família com estrutura socioeconômica favorável”. Também defende recuperar conquistas do passado.
“Nas décadas de 2000 e de 2010 tínhamos cobertura vacinal superior a 95%. De lá para cá, por uma série de circunstâncias, e com a pandemia de Covid-19, a cobertura foi comprometida. Em alguns territórios chegamos a ter um terço da população sem a proteção de vacinas, isso é preocupante”, afirma o pediatra, lembrando a reintrodução recente do sarampo no país com a entrada de migrantes desprotegidos contra a doença e falhas na cobertura vacinal.
Garantir uma atenção básica de qualidade no SUS, com cobertura vacinal, acompanhar o crescimento da criança pelo Saúde da Família, reforçar a estratégia, corrigir falhas, garantir uma boa alimentação, estimular aleitamento materno e criar programas de geração de renda que não deixem as famílias mais vulneráveis dependentes de eventuais auxílios emergenciais são recomendações de Maggi para proteger a infância.
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* Este conteúdo integra a série Eleições 2022: Escolha pelas Mulheres e pelas Crianças. Uma ação do Nós, Mulheres da Periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
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