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A Marco Zero teve acesso ao processo que o governador de Pernambuco Paulo Câmara move contra o estudante David Alves, de 26 anos, por conta de um perfil no instagram que satirizava o político. O inquérito da Polícia Civil indiciou o estudante por difamação, injúria e falsa identidade. No processo, há apenas poucos prints do perfil, que foi retirado do ar pelo próprio instagram alguns meses após ter sido criado em dezembro de 2018. A audiência inicial do caso ainda não foi marcada.
Com 66 páginas, a ação está no Juizado Especial Civil e Criminal do Torcedor. Ao contrário do que foi informado à Marco Zero pela assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) na semana passada, o processo não está sob segredo de Justiça. “Não está no Juizado sob nenhuma medida cautelar de sigilo. Mas como se trata de um processo físico, que não está disponível de forma eletrônica, o acesso fica mais difícil”, explica o advogado Rafael Vasconcelos, do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), que assumiu o caso de David.
Dos três crimes, o único que precisaria do encaminhamento do Ministério Público de Pernambuco era o de falsa identidade, já que injúria e difamação cabem só denúncia pelo próprio ofendido. a primeira manifestação, de 11 de junho de 2019, o promotor José Paulo Cavalcanti Xavier Filho não aceitou a denúncia de falsa identidade.
Porém, mais de um ano depois, em 17 de junho de 2020, o promotor José Bispo de Melo considerou “existentes possíveis elementos da figura típica do delito do art 307”, que é justamente o que trata sobre falsa identidade.
No inquérito policial, o delegado Eronides Alves de Meneses Júnior escreveu que “verificou-se que o perfil ‘Paulo Reizinho Câmara’ vinha efetuando postagens ofensivas, passando-se pelo governador do estado, sendo solicitada a esta especializada a devida apuração”. Não se especifica quem solicitou a investigação, afirmando-se apenas que foi “pessoa da sociedade”.
“Esse é outro agravante dessa medida intimidatória. Amparado pelo suposto delito de falsa identidade, a Polícia Civil agiu de ofício para iniciar o procedimento policial. É mais um caso em que a sociedade questiona ‘Quem deu a ordem para essa violação?’ Por isso, a insistência nessa tipificação de falsa identidade para “justificar” esse ato de ofício, o que é totalmente incabível nos casos de difamação e injúria, que exigem a manifestação expressa da suposta vítima. Essa medida foi pensada para blindar a figura de Paulo Câmara”, afirma o advogado do CPDH.
Para o representante legal de David, a mudança de posicionamento do Ministério Público de Pernambuco causa estranheza. “O primeiro promotor descartou a falsa identidade e isso motivou a transferência dos autos, mas o promotor do juizado reconsiderou a possibilidade designando a transação penal. Isso agrava o caso”, diz o advogado Rafael Vasconcelos. “Se não tivéssemos a nova manifestação do Ministério Público, o procedimento cairia”, completa.
A descrição da página “Paulo Reizinho Câmara” era clara ao afirmar que se tratava de uma página de humor. O próprio print anexado ao inquérito traz as informações do perfil: “Perfil ironizando o governador de Pernambuco/ O melhor governador da história do Brasil (emoticon de coroa)/ Me escolham para governar o seu estado”.
Todos os prints do processo são do período em que a página tinha aproximadamente 3,4 mil seguidores – ela chegou a mais de 7 mil. A única ofensa clara no material estaria em um comentário de uma seguidora, que pergunta “e os buracos das pistas tão igual ao rombo da bct da tua mãe desgraçado” (sic). O autor da página até chama a atenção da descompostura. “Essa minha eleitora educaçãozinha é uma beleza” (sic). O restante dos prints mostram “tiração de onda” com demandas da população.
Para chegar até David Alves, a Delegacia de Crimes Cibernéticos solicitou ao Facebook, empresa que controla o instagram, os registros de acesso à conta. Com os números do IP, a delegacia solicitou à operadora Tim os dados do telefone pré-pago usado para acessar a conta e assim chegou até David Alves. Também foram solicitados os dados do provedor que David tinha em casa e que estavam em nome da mãe dele.
O instagram também repassou o número usado para confirmação da conta por SMS. Todas as solicitações foram feitas por meio de medidas judiciais. No inquérito, consta a foto que David usava no WhatsApp – e que ele viu impressa na delegacia, como um banner.
O inquérito afirma que no interrogatório David confirmou que era o autor do perfil e que não criou com o intuito de se passar por Paulo Câmara, mas de satirizar a gestão do governador. “Que questionado se está arrependido de ter criado o perfil, o interrogado não se manifestou. Que, questionado se houve xingamento da sua parte contra a pessoa de Paulo Câmara, o interrogado respondeu que não”. Não consta o testemunho de nenhuma outra pessoa no inquérito, apenas David.
O inquérito policial foi remetido ao MPPE no dia 28 de maio. O delegado Eronides Alves de Meneses Júnior assina o indiciamento por difamação, injúria e falsa identidade.
“O que fica muito claro no inquérito é a sanha punitivista do Governo do Estado. Esse desejo de punir e intimidar ficou muito bem evidenciado pela tipificação, colocando inclusive falsa identidade, que de longe é incabível. E os próprios policiais que falaram para David que foi uma diretriz do Palácio”, diz o advogado Rafael Vasconcelos.
O CPDH tem uma forte atuação na garantia da liberdade de expressão e por isso aceitou atuar no caso de David Alves. Mas seguir o curso no âmbito judicial não é o caminho que o advogado ou David querem. O que eles querem é que Paulo Câmara desista da ação.
“Para falar a verdade, o que eu esperava que já tivesse acontecido é que ele se pronunciasse. Mas o que espero agora é que ele não só tire o processo, mas que ele vá a público, fale. Esse caso que aconteceu comigo pode acontecer com qualquer cidadão. Ele não está agindo só contra mim, mas contra toda a sociedade: qualquer cidadão que pensar em fazer alguma crítica ou sátira vai pensar duas vezes, vai ter medo. O medo censura. Isso viola os meios democráticos. Isso é gravíssimo”, diz David Alves.
O advogado Rafael Vasconcelos diz que nesse tipo de ação é comum que as partes cheguem a um acordo. Como são crimes de menor potencial ofensivo, que não dão cadeia, as penas são retratações ou multas. “Muita gente não avança na defesa por falta de assistência jurídica, mas, se for necessário, a gente segue até a última instância. Mas acreditamos que essa ação não vá prosperar. Foi uma tentativa de intimidação. O bom senso há de prevalecer”, acredita.
O advogado do CPDH afirma que há no sistema de justiça muito espaço para arbitrariedade sob o fundamento de suposto interesse público. “São amparados em tipos penais que não se constituem nem de fato nem de direito. Mas até isso ser provado, já se deu o poder para que o cidadão tenha sua vida devassada pelas investigações. Esse caso é muito preocupante do ponto de vista da defesa do estado de Direito”, diz.
O governador Paulo Câmara não se pronunciou sobre o caso. A Marco Zero entrou em contato com a assessoria de comunicação do Palácio das Princesas, mas não obteve resposta. O caso também não repercutiu nos três principais jornais do Recife. Além da Marco Zero, apenas o site Leia Já publicou matéria sobre o caso.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org