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“Foi minha condição de travesti”, afirma Keila Simpson após ser impedida de entrar no México

Raíssa Ebrahim / 02/05/2022

Crédito: Instagram/Keila Simpson

Uma das mais importantes ativistas do país na luta contra a violência e na defesa dos direitos de pessoas trans e travestis foi impedida de entrar no México por não ter seu nome retificado no passaporte. Keila Simpson, que preside a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 55 anos, desembarcou na Cidade do México para participar do Fórum Social Mundial, megaencontro que reúne movimentos sociais, ONGs e organizações da sociedade civil, mas foi barrada pela imigração. Após dez horas com o celular retido, sem informações e sem poder dialogar com as demais pessoas da delegação, ela foi colocada num voo de volta ao Brasil.

Eram 7 horas da manhã do domingo, 1º de maio, no México quando Keila desembarcou do avião. Ela conta que portava, assim como os demais membros da delegação, todos os documentos necessários, incluindo passaporte e visto de imigração, além do convite oficial do evento. No balcão de imigração, um funcionário solicitou algumas outras comprovações, como reserva de hotel e voucher aéreo de volta ao país de origem. A brasileira diz que apresentou tudo, conforme solicitado, porém foi a única que não teve o passaporte carimbado, mesmo o documento sendo recente, emitido em 2020, com sua foto, de batom e usando brincos.

Ironicamente ela estava indo participar do Fórum Social Mundial justamente para apresentar os dados levantados anualmente pela Antra sobre a realidade brasileira de violência contra as populações LGBTQIA+, trans e travesti.

Segundo Keila, ela ainda foi questionada sobre outras informações, a exemplo do motivo da viagem, da função que exerce, quanto tempo ficaria no México e quanto dinheiro tinha. A ativista viajou pela Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) com as despesas gerais pagas, por isso só tinha levado dinheiro para alimentação e outros gastos pessoais. Depois disso, a equipe do aeroporto reteve o RG e o celular dela e não comunicou mais nada.

Keila relata que ficou numa sala retida com outras pessoas e, somente algumas horas depois, conseguiu fazer uma ligação por um telefone fixo para avisar a alguns contatos o que estava acontecendo e assim conseguir apoio de uma organização de direitos humanos no México e também do restante da delegação brasileira na tentativa de reverter a situação. Ativistas e autoridades locais fizeram uma denúncia ao Conselho Nacional de Direitos Humanos mexicano, que imediatamente elaborou uma nota e medida cautelar. Porém, quando conseguiram acesso ao departamento de imigração, não havia mais tempo hábil. A emissão da passagem de retorno para São Paulo foi mais rápida. Às 17h, Keila já estava embarcando de volta para o Brasil.

Retificação é um direito, não um dever

“Foi minha condição de travesti que não deixou eu entrar. Além de travesti, negra”, disse ela à Marco Zero em entrevista por telefone na manhã desta segunda-feira. “Por um lado, foi bom para eu poder descansar já no Brasil. Mas, por outro, é estranho quanto à celeridade. Como pode uma celeridade tão grande sem um argumento último? Sem esperar, se tinha alguém que iria lá? Porque a delegação foi lá no aeroporto, procurar saber, pedir informações”, questiona.

Ela só recebeu o celular de volta já na porta do avião. Na avaliação da ativista, “o que aconteceu serviu para lançar luz sobre uma situação que muitas travestis passam mundo afora”. Keila lembra que muitas delas migram por diversas razões, muitas por questão de sobrevivência e para melhorar de vida e outras tantas por questões de violência no Brasil. “Cada uma tem a sua razão específica e a gente não consegue nem imaginar e perceber a dificuldade que é para essas pessoas mundo afora, pessoas anônimas, que têm direitos violados, que sofrem violência”, lamenta.

“Tomara que isso sirva para que as pessoas cada vez mais repensem as suas possibilidades de compreender as pessoas trans e travestis dentro das suas especificidades e individualidades que precisam ser respeitadas”, pede Keila. “A minha identidade de gênero, muito embora ela não dialogue com meu nome civil que está lá no documento, deve ser respeitada em qualquer ambiente, por uma decisão pessoal minha de fazer a retificação de nome ou não”, reafirma.

A retificação do nome é um direito, e não um dever. Existem pessoas que não querem mudar o nome, e Keila é uma delas. “Na minha visão, eu acredito que a retificação me anula enquanto travesti. Eu tenho tanto orgulho de ter essa identidade que eu não quero alterar meu nome para não perder essa identidade. Essa é uma decisão minha, individual e deve ser encarada assim, mas não pode interferir no meu direito de ser identificada enquanto o gênero feminino que eu reivindico, ser chamada de Keila”, coloca.

Em nota conjunta, Abong, Antra e Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) citam que, “de acordo com informações de ativistas mexicanas, a normativa do Instituto Nacional de Migração do país não está harmonizada com os mais altos princípios e parâmetros internacionais de direitos humanos”. As três organizações estão convocando assinaturas da nota sobre a “transfobia sofrida pela ativista Keila Simpson”.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com