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O dia D para a democracia no Brasil

Laércio Portela / 29/10/2022
Imagem de centenas de pessoas em pé, aglomeradas com uma faixa em uma parede bege com arcos escrito ditadura nunca mais.

Crédito: Rovena Rosas/Agência Brasil

Mais de 156 milhões de brasileiros e brasileiras estão aptos a votar neste domingo (30) para eleger o próximo presidente da República. A maioria (53%) de mulheres. Em 12 estados, incluindo Pernambuco, eleitores e eleitoras também vão às urnas escolher o governador ou governadora nesse segundo turno.

Uma eleição atípica em que o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) passou meses desqualificando o processo eleitoral, questionando as urnas eletrônicas e atacando ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mais até: incentivando a desobediência à lei e incitando apoiadores a praticar atos de violência.

As rajadas de tiros de fuzil do ex-deputado e presidente do PTB, Roberto Jefferson, aliado de primeira hora de Bolsonaro, contra policiais federais que cumpriam mandado de prisão contra ele são o exemplo mais emblemático e prático da combinação entre o discurso de ódio e a política armamentista bolsonarista.

A propagação de fake news e desinformação, especialmente nas redes sociais, whatsapp, telegram e nos púlpitos das igrejas evangélicas, foi novamente o maior desafio para as autoridades eleitorais. A conhecida pressão dos pastores bolsonaristas sobre os fiéis se ampliou para grupos de empresários e comerciantes que ameaçaram demitir funcionários que não votassem em Bolsonaro.

Para o cientista político Túlio Velho Barreto, essa é uma eleição de uma importância sem precedente no país desde o processo de redemocratização nos anos 1980. “Da primeira eleição direta para presidente, em 1989, até agora, jamais a democracia esteve tão ameaçada”, afirma, lembrando o caminho político percorrido para chegarmos até aqui: do questionamento das regras do jogo por Aécio Neves em 2014, que abriu as portas para o golpe contra Dilma, em 2016, ao protagonismo da extrema-direita a partir de 2018.

Túlio afirma que o governo Bolsonaro e suas lideranças agiram à margem da lei desde que chegaram ao poder em 2019 e sem um projeto para o país. A referência histórica do bolsonarismo é a ditadura civil-militar de 1964-1985 e ele atua com o intuito de destruir a Constituição Federal de 1988 e o seu legado.

O cientista político acredita que Bolsonaro aposta no segundo mandato para construir um arranjo institucional autoritário e exercer um poder sem os limites hoje impostos pela Constituição e o controle dos poderes Legislativo e Judiciário. O presidente citou, inclusive, a possibilidade de encaminhar projeto ao Congresso para ampliar o número de ministros do STF e garantir maioria. A última vez que isso aconteceu foi justamente na ditadura militar. Com a repercussão negativa, tem se comprometido a manter o total de 11 cadeiras na Corte.

Historicamente, parte importante de todo projeto autoritário é descredibilizar, atacar e calar a imprensa. Não à toa, durante os quatro anos de governo, Bolsonaro, seus filhos, ministros e principais autoridades públicas federais pressionaram e ameaçaram sistematicamente profissionais da comunicação, especialmente as mulheres jornalistas.

“O que está em jogo na eleição desse domingo é a defesa da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa nesse país, onde em setembro do 2022 aconteceram mais de 250 ataques contra jornalistas e comunicadores de modo geral. O que está em jogo é a defesa da liberdade das pessoas que atuam no campo dos direitos humanos”, enfatiza Ana Veloso, professora de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, coordenadora do Observatório de Mídia e integrante do coletivo Intervozes.

A política negacionista e a falta de empatia com as vítimas da pandemia de Covid-19 se conformou como a experiência mais radical vivida no governo Bolsonaro que dá a medida do projeto autoritário citado por Túlio e Ana. O Brasil contabiliza 688 mil mortes. O segundo país no mundo em números absolutos de óbitos por Covid, perdendo apenas para os Estados Unidos, que superaram a marca de 1 milhão de vítimas fatais. Com 3% da população mundial, o Brasil possuiu 10% do total de mortos por Covid-19 no planeta.

“Tivemos uma altíssima mortalidade de indígenas, uma maioria de negros, idosos e pobres. Somos o último país a ter um governante a ainda negar a gravidade do que foi e do que ainda é a pandemia. Ele se recusou a reconhecer luto nacional, continua a fazer propaganda de produto sem eficácia, incentivou a invasão de hospital, agressão a profissionais de saúde, e sabotou todas as respostas possíveis para o enfrentamento da pandemia, desdenhou do sofrimento e da morte”, critica Bernadete Perez, médica sanitarista, professora da UFPE e vice-presidenta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

A volta do Brasil ao Mapa da Fome é também um dos símbolos mais gritantes da falta de empatia com os mais pobres e de políticas continuadas e consistentes, como o aumento real do salário mínimo e o apoio à agricultura familiar, de combate à desigualdade. Dados de junho do 2o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar apontavam o número de 33,1 milhões de brasileiros sem ter o que comer diariamente. Uma volta aos anos 1990.

Eleitora de Lula mostra cartaz de apoio em caminhada do ex-presidente na cidade de São Gonçalo, Rio de Janeiro. Crédito Ricardo Stuckert

Pesquisas de véspera dão vantagem a Lula

Duas pesquisas divulgadas na noite do sábado (29), véspera da votação, confirmaram a vantagem de Lula nas intenções de voto dos eleitores na reta final do segundo turno. No Ipec, encomendada pela TV Globo e realizada entre quinta e sábado, Lula obteve 54% dos votos válidos contra 46% de Bolsonaro. Os dois aparecem com os mesmos percentuais da pesquisa anterior, de 24 de outubro.

No Datafolha, encomendado pela Globo e pela Folha de SP, a diferença é menor e caiu na margem de erro na comparação com a anterior. Agora, Lula tem 52% dos votos válidos contra 48% de Bolsonaro. Os dois aparecem, portanto, empatados no limite da margem de erro de dois pontos para mais ou para menos. No levantamento anterior, a diferença era de 53% para 47%.

Considerando os votos totais no Datafolha, Lula aparece com os mesmos 49% de antes e Bolsonaro oscilou positivamente de 44% para 45%. Quatro por cento das pessoas ouvidas disseram votar em branco ou que vão anular o voto e 2% seguiam indecisos. Os dados do Datafolha também revelam que essa é uma eleição de rejeições, do antipetismo contrta o antibolsonarismo: 46% dos eleitores dizem não votar de jeito nenhum em Lula e 50% dizem o mesmo sobre Bolsonaro.

Ao longo da eleição, as pesquisas mostraram que Lula possui mais votos entre as mulheres, os católicos e a população com renda abaixo de 2 salários mínimos. A região mais petista do Brasil é o Nordeste. Já Bolsonaro tem mais votos entre os homens, evangélicos e nos estratos de renda acima de 2 salários mínimos. A região mais bolsonarista é o Sul do Brasil.

No entanto, a que mais mobilizou a atenção dos dois candidatos no segundo turno foi a Sudeste, onde estão os três maiores colégios eleitorais do país e Bolsonaro ganha nos válidos por 52% a 48% na pesquisa de véspera do Datafolha.

Em Pernambuco, as duas pesquisas dão vantagem para Raquel Lyra (PSDB) na disputa com Marília Arraes (Solidariedade). No Ipec, Raquel tem 54% contra 46% de Marília nos votos válidos. Mesmo percentual da pesquisa Datafolha.

Frente ampla contra o bolsonarismo

No segundo turno, Lula conseguiu ampliar significativamente a frente pela democracia com o engajamento e apoio de Simone Tebet (MDB-MS), do PDT de Ciro Gomes, da ex-ministra Marina Silva, da maior parte do PSDB, incluindo ex-ministros da Economia e presidentes do Banco Central do governo Fernando Henrique Cardoso. O próprio FHC, e até o ex-senador José Serra, declararam voto em Lula nesse segundo turno.

Artistas globais e não globais também aderiram em peso à campanha, incluindo ex-lavajatistas arrependidos como o ator Marcelo Serrado e o deputado Alexandre Frota. O arco de apoios cresceu a ponto de incluir grandes empresários alinhados à centro-direita, representantes do mercado financeiro e figuras políticas como João Amoêdo, candidato a presidente do Novo em 2018. Houve também um movimento importante de religiosos – evangélicos, católicos e de matriz africada – em defesa da democracia e declarando o voto em Lula para se contrapor às mentiras difundidas nas igrejas contra o ex-presidente.

Marina Silva, Lula, Simone Tebet e Janja em agenda em ato de campanha na Grande Belo Horizonte. Crédito: Ricardo Stuckert

Bolsonaro contabilizou o apoio dos atuais governadores dos três estados do Sudeste: Romeu Zema (Novo) em Minas, de Claúdio Castro (PL), no Rio, ambos reeleitos, e do governador de São Paulo Rodrigo Garcia (PSDB), terceiro colocado no primeiro turno. Também declararam votos em Bolsonaro o jogador Neymar Jr. e alguns dos principais representantes da música sertaneja, como Leonardo, Zezé de Carmargo, Chitãozinho, Gustavo Lima e Sula Miranda.

Projeto de reconstrução nacional

São dois os desafios postos para os democratas no Brasil. Primeiro, derrotar Bolsonaro nas ruas, depois construir maiorias para tocar uma agenda de reconstrução nacional. “É isso o que está em jogo agora: impedir em definitivo a morte da democracia, sequestrada e torturada que foi com a ascensão da extrema-direita ao poder, ou ter que enfrentar um regime autocrático e terrorista ainda que construído a partir de eleições, o que lhe daria um fajuto verniz de democracia”, analisa Túlio Velho Barreto.

“Trata-se de impedir, em última instância, a barbárie; para dar início à reconstrução do projeto civilizatório propiciado pela Constituição Federal de 1988, aprofundado nas décadas de 1990, mas, sobretudo, na primeira década deste século (durante os dois mandatos de Lula)”, argumenta.

Túlio acredita que uma vitória de Lula por uma pequena margem deve ser seguida de um questionamento legal e político pelo atual presidente e seus apoiadores – nos moldes de Aécio Neves em 2014 – e não descarta o que chama de ações terroristas como a praticada por Roberto Jefferson. “Essas duas bombas de efeitos retardados foram montadas por Jair Bolsonaro e aliados durante todo o seu mandato. E dão consequências ao modus operandi da linha-dura que atuou na ditadura e na reação ao retorno da democracia, da qual alguns militares do governo fizeram parte ou são tributário de seu legado terrorista”.

Para a médica sanitarista Bernadete Perez, é preciso afirmar que os brasileiros e brasileiras não estão condenados ao retrocesso civilizatório dos últimos anos, mas à possibilidade real da mudança. “O que a gente tem que fazer imediatamente é por fim democraticamente a esse pesadelo. Precisamos recuperar a vontade das pessoas, dos grupos, dos coletivos para a construção de projetos críticos e alternativos à descrença, ao pessimismo, às redes frias de violação dos direitos humanos e pra isso a gente precisa de esperança, reencantamento, práxis dos territórios, alegria dos territórios, diversidade cultural e de resistência insistente e criativa. A ocorrência de transformações depende sempre do desejo também, de imaginar futuros e novas utopias possíveis”.

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AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República