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Um ano após a morte do menino Miguel, Mirtes Renata continua se mobilizando em busca de justiça

Giovanna Carneiro / 02/06/2021

Um ano após a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, sua mãe Mirtes Renata convoca organizações e entidades para realizar atos por todo o Brasil. Ela cobra justiça e zelo pela vida de crianças negras. As mobilizações ocorrem nesta terça-feira, 2 de junho, em diversas cidades além do Recife, entre elas Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal

No Recife, o ato Justiça por Miguel iniciará às 14h em frente ao Palácio da Justiça, centro da cidade e seguirá, em caminhada, até as Torres Gêmeas, prédio de luxo de onde Miguel caiu e também residência da ex-primeira-dama de Tamandaré e ré no caso da morte da criança, Sarí Corte Real.

Em meio a dor de sofrer a ausência do único filho, Mirtes Renata faz questão de continuar mobilizada para alcançar um direito que lhe traria um mínimo de conforto: a punição daquela que seria responsável pelo abandono que resultou na morte de Miguel.

Passados 365 dias do delito, Sarí Corte Real, ré no caso que a responsabiliza por abandono de incapaz com resultado em morte, segue aguardando o julgamento e o desfecho do caso. De acordo com a advogada Maria Clara D’Ávila, do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop), que presta assistência jurídica à Mirtes Renata, o processo ainda está no momento de reunião de provas e oitivas de testemunhas.

Uma luta contínua

A mobilização em memória de um ano da morte do menino Miguel acontece menos de um mês depois do ato que pedia a anulação do depoimento de uma testemunha do caso, que foi ouvida sem a presença dos advogados de Mirtes. No dia 20 de maio, a família da criança e movimentos sociais se reuniram em frente ao Centro Integrado da Criança e do Adolescente, no bairro da Boa Vista, centro do Recife e exigiram uma resposta do Ministério Público de Pernambuco.

“Não basta a dor da morte do meu filho eu ainda tenho que estar nessa situação: clamando por justiça. A gente fez campanha nas redes sociais, mas também teve que se arriscar e vir às ruas no meio de uma pandemia para pedir celeridade no judiciário para o caso Miguel. É uma situação bem difícil, mas a gente tem que ‘tá’ cobrando, porque se não for dessa forma eles não agem”, declarou Mirtes Renata, na ocasião.

Em ato, Mirtes pede a anulação de depoimento sem presença dos seus advogados.

Em ato, Mirtes pede a anulação de depoimento sem presença dos seus advogados. Crédito: Divulgação

O resumo de um ano de dor

A morte de Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, na terça 2 de junho de 2020, expõs sem retoques a brutalidade do racismo por trás das desigualdades no Brasil. A criança caiu do nono andar das Torres Gêmeas, no bairro de São José, centro do Recife, quando procurava a mãe, a trabalhadora doméstica Mirtes Renata Souza, que passeava com os cachorros da patroa Sarí Gaspar Côrte Real, esposa de Sérgio Hacker, na época, prefeito de Tamandaré.

É fundamental lembrar que, em junho de 2020, o Brasil já vivia a pandemia do coronavírus. No período, muitas trabalhadoras e trabalhadores estavam em casa e a orientação das autoridades sanitárias era que, apenas as pessoas do serviço essencial circulassem.

Mirtes e Miguel deveriam estar em sua casa, protegidos e com o salário integral da mãe garantido. Nesse período, a própria Mirtes e sua mãe, Marta, já tinham sido contaminadas pelo coronavírus enquanto trabalhavam na casa da família. Sarí deixou a criança entrar no elevador sozinha.

Miguel foi sepultado no dia 4. Até então, Mirtes não havia visto as imagens que mostram a criança sozinha no elevador. Sérgio e Sarí, chegaram a ir ao velório da criança, mas foram expulsos.

“Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na televisão. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias. Mas o dela não pode estar na mídia, não pode ser divulgado”, disse Mirtes, em entrevista divulgada na TV Globo após sepultar o único filho.

Desde o início da cobertura do caso, a Marco Zero publicou o nome de Sarí, o que não aconteceu em outros veículos. Uma nota oficial da Polícia Civil “justificava” que o nome não foi revelado aos jornalistas porque, desde que a Lei 13.869, ou lei do Abuso de Autoridade, entrou em vigor, os nomes dos suspeitos de crimes em investigação deixaram de ser informados.

O jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea e professor universitário Paulo Victor Melo não tem dúvidas que a tentativa de manter o nome ausente do noticiário aponta para dois aspectos da sociedade. “O primeiro é o viés do racismo estrutural que obriga uma trabalhadora negra a levar seu filho para o trabalho, expondo ambos à pandemia, quando devia estar protegida em casa. Segundo, é a relação íntima que existe entre a mídia o poder politico e econômico”, afirma.

Sarí chegou a ser presa e foi libertada após pagar fiança de R$ 20 mil para responder em liberdade por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), segundo o delegado Ramon Teixeira, responsável pelo caso.

E se a criança que caiu do nono andar das Torres Gêmeas fosse o filho da patroa que estivesse sob os cuidados da empregada? O nome da trabalhadora doméstica seria protegido pela Polícia Civil e a ela seria dada a oportunidade de pagar fiança compatível à sua renda e responder em liberdade?

No dia 6 de junho, publicamos uma matéria que mostrava o contrário do tratamento recebido por Sarí. Dias antes de começar o isolamento social por conta da pandemia publicamos uma reportagem sobre Wilson Xavier. Ele passou praticamente um ano preso por suspeita de participar do assalto à imobiliária Jairo Rocha, em Boa Viagem, em 2018.

Wilson foi indiciado em inquérito conduzido pelo delegado Ramon Teixeira, o mesmo que viria a ser responsável pelas investigações sobre a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva. Contra Wilson e outro réu, Bruno Nunes de Andrade, preso por 9 meses, só havia os reconhecimentos feitos meses depois do crime por algumas das vítimas, parte deles modificados em Juízo.

A questão mais grave do inquérito, segundo a defesa dos réus, é que o assalto foi todo filmado pelo circuito interno de câmeras da imobiliária Jairo Rocha e, apesar das negativas de Wilson e de Bruno sobre a participação no crime, as imagens não foram examinadas e periciadas para comprovar a compatibilidade dos rostos dos assaltantes com os dos acusados.

A família de Wilson e os advogados dele e de Bruno acusam os policiais comandados pelo delegado Teixeira de mentirem para os suspeitos no ato da condução de cada um deles para a delegacia, o primeiro detido em casa e o segundo no trabalho.

Embora estivessem sendo acusados do assalto, os policiais disseram a Wilson que havia uma denúncia de abusos de idosos e crianças e a Bruno que o caso se relacionava à Lei Maria da Penha, que prevê penas para violência doméstica contra as mulheres.

Primeiro ato – 05 de junho de 2020

A indignação pela morte de Miguel Otávio, 5 anos, foi levada às ruas do Centro do Recife, na tarde do dia 5. Em sintonia, as palavras de quem estava presente ecoavam por meio de uma reivindicação: justiça por Miguel. Após mais de dois meses de pandemia, os gritos de ordem tomaram o espaço do silêncio, em tempos de isolamento social e comércio majoritariamente fechado.

Mirtes não participou do ato, mas foi representada pela família que estava vestida com camisas estampadas com o rosto de Miguel. Flores e cartazes foram colocados na calçada em frente à portaria do prédio de luxo.

Dias depois: 29 de junho

Baixada a poeira da cobertura jornalística dos primeiros fatos, na manhã da segunda-feira, 29 de junho, a Delegacia de Santo Amaro abriu as portas mais cedo para receber Sarí Corte Real, pouco antes das 6h, o delegado Ramon Teixeira estava a postos para colher o depoimento da acusada de homicídio culposo – quando não há intenção de matar – na morte de Miguel: a mulher branca e rica, moradora das Torres Gêmeas.

De acordo com nota da Polícia Civil de Pernambuco, o horário pouco comum de abertura da delegacia se deu após pedido dos advogados de Sarí. “Os advogados da acusada apresentaram requerimento ao delegado que preside o inquérito policial solicitando a realização do depoimento em horário mais cedo que o de início do expediente da unidade policial. Considerando os argumentos relativos à possibilidade de aglomeração de pessoas e o risco de agressão à depoente por parte de populares, o delegado deferiu o requerimento”.

Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cláudio Ferreira, houve favorecimento à acusada no momento em que o delegado acata pedido dos advogados para o depoimento acontecer antes do horário de funcionamento da delegacia.

No dia 1 de julho, o delegado Ramon Teixeira, responsável pelas investigações da morte do menino Miguel, decidiu por mudar o enquadramento da acusação que pesava sobre Sarí Corte Real “para abandono de incapaz resultando em morte”. Ela foi a única indiciada pelo inquérito policial.

A decisão aumentava o potencial punitivo em relação ao auto de flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar, que permitiu que a acusada pagasse R$ 20 mil de fiança e fosse liberada no dia da morte de Miguel por decisão do delegado. A pena prevista para o crime de “abandono de incapaz com resultado morte” é de 4 a 12 anos de reclusão. O homicídio culposo prevê pena de 1 a 3 anos de prisão.

Segundo Ato – 13 de julho de 2020

Mais uma vez Mirtes foi às ruas reivindicar justiça pela morte de Miguel. Mais uma vez Mirtes mostrou que a justiça pela morte de seu filho tem um significado coletivo e social.

Eu espero que essa luta que vocês estão vendo que eu estou tendo sirva de exemplo para várias mães que, infelizmente, perderam seus filhos de uma forma brusca e violenta. Não se calem por isso. Busquem justiça. Independente se vocês têm condições financeiras ou não.” (Mirtes Renata Souza, mãe de Miguel)

Foi com a frase citada acima que ela descreveu a sua luta no ato que cobrou o Ministério Público de Pernambuco (MP-PE) para que siga a conclusão do inquérito policial e denuncie Sarí Gaspar Corte Real à Justiça por “abandono de incapaz resultando em morte”.

Fim do prazo

No dia 14 de julho, último dia do prazo, o Ministério Público denunciou Sarí por “abandono de incapaz resultando em morte” para Justiça. A partir dessa data à Justiça decidir se Sarí Gaspar Côrte Real será processada judicialmente e irá a julgamento pela morte de Miguel

A denúncia seguiu para a 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital comandada pelo magistrado, José Renato Bizerra. Sarí seguiu em liberdade.

A entrevista

No dia 11 de agosto, uma equipe de reportagem da MZ esteve na casa de Mirtes e Marta para uma entrevista.

De paredes azul clara, cor escolhida por ele, porta-retratos com fotos de várias etapas da vida curta do garoto, aos brinquedos no canto da sala, tudo naquela casa era Miguel. Do quarto, Mirtes ainda não havia tirado nada e relatou não ter coragem de mostrar.

“Ele era uma criança muito carinhosa, onde ele passava e encontrava flores , trazia para mim. Hoje de manhã eu estava caminhando e tem uma casa que passei que tem um pé de papoulas bem bonitas e eu lembrei dele. Hoje de manhã eu fui caminhar chorando com saudade do meu filho”.

Terceiro ato – 02 de setembro de 2020

Três meses depois da morte de Miguel, a família, instituições a sociedade civil e do movimento negro lançaram a campanha “Ouçam Mirtes, a mãe de Miguel”, com objetivo de amplificar a voz de Mirtes Renata e cobrar da Justiça de Pernambuco que o caso seja concluído com isenção e rapidez.

Primeira audiência (o racismo) – 03 de dezembro de 2020

Seis meses depois da morte de Miguel, no dia 03 de dezembro, Mirtes participou da primeira audiência de instrução do julgamento de Sarí. Ao sair, sete horas depois, disse: “Querem transformar meu filho no demônio e Sarí em santa”. Na audiência de hoje quiseram transformar ele na pior criança do mundo e Sari numa pessoa delicada. Querem passar ela por doida. Uma mãe de família, empresária, e não tem percepção do perigo?”.

O que mais a revoltou diante de tudo que viu na audiência foi algo que ela vinha negando desde o começo do caso: o racismo. “Ele não teve o direito de ser criança, de ser protegido. Isso ficou bem claro, bem explícito, na audiência de hoje. Eu vou mover céus e terras para que a condenação aconteça”.

Quarto ato – 20 de maio de 2021

No dia 20 de maio de 2021, Mirtes juntamente com organizações e movimentos sociais realizaram um ato reivindicando a anulação do depoimento de uma das testemunhas do caso.

No dia 3 de maio, os advogados de Mirtes Renata Santana protocolaram um pedido de anulação de um depoimento, que aconteceu sem a presença dos advogados que representam a família de Miguel. Antes, os advogados de Mirtes já tinham apresentado solicitações para estar presentes à oitiva.

De acordo com os advogados, o fato da audiência ter ocorrido com a presença do Ministério Público de Pernambuco, autor da ação penal, e testemunhada apenas por representantes de Sarí Corte Real, compromete a imparcialidade e favorece a acusada.

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.